segunda-feira, 4 de outubro de 2010

FUVEST/UNICAMP 2010 – AULA DE LIVRO

FUVEST/UNICAMP 2010 – AULA DE LIVRO
IRACEMA
(José de Alencar)
“Não restam dúvidas de que é isto a leitura:reescrever o texto da obra dentro do texto das nossas vidas.”
(Roland Barthes)
“Se quisermos ler de fato, temos de ler o nosso próprio livro no texto que temos diante de nós; há que torna-lo pessoal, traze-lo a nossa própria vida e pensamento, ao nosso juízo e ação pessoais. Não nos é possível penetrar nos textos que lemos, mas estes podem entrar em nós [...]. A leitura é sempre o esforço conjugado de compreender e incorporar.”.
(Robert Scholles)
Como ler uma obra literária em Prosa? Como organizar a leitura? Como reter o essencial, distanciando-se do pormenor secundário? Como captar o detalhe expressivo?
            No estudo dos romances e contos que passaremos a realizar, você de início vai aprender a reconhecer, ao longo da leitura, os escritores e os períodos, os estilos em que escreveram.
            Em seguida, é hora de entrar no texto, de distinguir a voz que conta a história, o narrador. Em primeira ou em terceira pessoa, participando do relato como personagem, ou vendo-o de fora, enquanto mero observador ou, ainda, dotado de onisciência, penetrando parcial ou totalmente no enredo, a postura do narrador é fundamental para a compreensão do romance.
            Você sabe: ele não se confunde com o autor, trata-se de alguém do mundo da ficção, da fantasia, em que o autor se transfigura para contar mais e melhor, para apresentar o foco narrativo, o ponto de vista, que é preciso captar.
            Na seção dedicada ao narrador, a primeira desse trabalho, você vai se espantar com as pistas que perceberá para chegar à segunda parte, a do enredo, na qual ficará sabendo o essencial, o fundamental da trama, dos conflitos vividos pelos personagens.
            Quanto a eles – os seres imaginários que dão carne e sangue aos relatos, povoando-os como heróis (protagonistas), como vilões (antagonistas), como ajudantes na construção da trama (personagens secundários) – dedicamos-lhes a terceira parte, a qual relacionamos com a primeira e com a segunda.
            Por meio da abordagem do tempo e do espaço – o quando e o onde das narrativas – chegamos enfim à articulação de todos os elementos, que se dá na e pela linguagem.
            Todos os livros reúnem palavras em frases e períodos que se caracterizam por uma cadência específica, por um certo ritmo, por determinados traços estilísticos que os tornam únicos, insubstituíveis. Após comentarmos as particularidades lingüístico-literárias de cada um deles, haverá um trecho para você ler, reler, apreender, reconhecer... rememorar. Em síntese: não apenas compreender, mas incorporar.
Dados Biográficos:
José Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana, no Ceará, em 1829. estudante de Direito em São Paulo, lia avidamente os românticos franceses. Formado, passou a advogar na Corte, onde iniciou também sua carreira na imprensa, como folhetinista do Correio Mercantil. Dirigiu o Diário do Rio de Janeiro, onde divulgou seus primeiros romances.
Filho de José Martiniano, que fora duas vezes presidente de sua província e um dos principais mentores do golpe da maioridade de D. Pedro II, Alencar também interessou-se pela política, que o levou ao cargo de Ministro da Justiça. Foi eleito Senador pelo Ceará, mas D. Pedro II não o escolheu, embora tenha sido o primeiro colocado na lista sêxtupla: o imperador provavelmente não superara o ressentimento provocado pelas críticas que Alencar fizera, nas Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, a Gonçalves de Magalhães, protegido da Corte, e pelas críticas contidas em Cartas a Erasmo, em que analisando a grave situação interna do país, apelava a D. Pedro II que usasse o poder moderador como única solução.
Desgostoso, Alencar recolheu-se à vida privada, intensificando sua atividade literária. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1877.
José Martiniano de Alencar nasceu no final do Primeiro Reinado. Seu pai, que fora padre na juventude, exerceu influência na maioridade de D. Pedro II, tendo sido senador no Período Regencial.
José de Alencar saiu do Ceará para a corte aos 10 anos, em 1839, justamente no ano do nascimento de Machado de Assis, de quem seria amigo mais tarde. Concluindo os estudos secundários na corte, Alencar dirigiu-se para São Paulo, aos 16 anos, em 1845, para cursar faculdade de Direito, exceto terceiro ano, que faria em Olinda. Sua permanência em São Paulo coincidiu com a moda da poesia Byroniana, liderada por Álvares de Azevedo, 3 anos mais novo que ele.
De volta ao Rio, José de Alencar estréia como escritor no Correio Mercantil em 1853, quando Manuel Antônio estava publicando, neste mesmo jornal, as Memórias de um Sargento de Milícias. As crônicas publicadas nessa ocasião seriam mais tarde agrupadas em volume com o nome de Ao Correr da Pena.
Em 1856, Alencar provocou a famosa polêmica sobre a Confederação dos Tamoios, poema épico que Gonçalves de Magalhães escreveu e queria impor ao Brasil como uma grande epopéia. Alencar discordou com alarde dessa opinião e, no ano seguinte, publicou, como resposta, O Guarani. Esse, sim, seria a verdadeira epopéia romântica do segundo reinado.
Muito famoso com o sucesso do Romance, Alencar passou a dedicar-se mais intensamente a esse gênero literário. Da mesma forma, dedicou-se ao teatro, à advocacia e à política, tendo sido eleito deputado diversas vezes pelo Ceará. Durante a Guerra do Paraguai, foi ministro da Justiça, apesar de suas constantes rixas com D. Pedro II, tanto por razões estéticas quanto por razões políticas. Não conseguindo eleger-se senador, como fora o pai a quem tanto admirava, José de Alencar retirou-se da vida pública. Nessa ocasião foi muito apoiado pela amizade de Machado de Assis, que despontava como seu sucessor nas letras brasileiras.
Alencar morreu aos 48 anos vitimado pela tuberculose, no ano em que escrevera Encarnação, um romance de feições espiritistas.
O Romance Alencariano
            O ponto alto da produção de José de Alencar é, sem dúvida, o romance.
                Se atentamos para os quatro tipos de romances que escreveu (indianista, urbano, histórico e regionalista), podemos afirmar que, com eles, pretendeu fazer um amplo levantamento da realidade brasileira, considerando o passado e o presente, cidade e campo, litoral e sertão.
                Nos romances indianistas, particularmente, intentou oferecer sua visão do processo de formação da nação brasileira, considerando-o em suas distintas etapas.
                Se quisermos reconhecê-las cronologicamente, a ordem de leitura de seus romances indianistas não seria aquela em que foram publicados; mas a seguinte:
1.       Ubirajara – Nesse romance não figuram personagens brancos: a ação, portanto, desenvolve-se no período pré-cabralino, antes da chegada do português conquistador; revela-se, assim, o índio como elemento primeiro de brasilidade.
2.       Iracema – A ação decorre nos primeiros anos do descobrimento, quando se teriam dados os primeiros contatos entre o índio e o branco, formadores, segundo Alencar, da raça brasileira.
3.       O Guarani – a ação se passa no início do séc. XVII quando o povoamento e a colonização, realizados de modo sistemático, permitiram a fusão das duas nobres raças, de que adveio a extraordinária nação brasileira.
                Segundo o professor Antônio Cândido, levando em conta o modo de organização da trama do romance e os efeitos programados pelo romancista, teríamos 3 Alencares: o de Ação Heróica, voltada para a bravura e agilidade física da personagem; o da Ação Sentimental voltado para a ternura, o amor, pelo o domínio da consciência do dever e da honra; o da Ação Reduzida voltado para a revelação da alma de personagens problemáticas, com ênfase na sua análise psicológica.
                Alencar foi um dos principais criadores da língua literária brasileira, extraiu do tupi muitas sugestões poéticas com muitas sonoridades expressivas, certa sensorialidades visuais, algumas propriedades honomatopaícas e muitas imagens e ritmos de sua experiência com a paisagem brasileira.
                O indianismo foi marcante na obra Alencariana. As personagens (índios) são sempre transfiguradas pela imaginação. A capa do indianismo não pode ser atribuída apenas à natureza escapista do Romance Romântico (levando em consideração que o índio é descrito física e psicologicamente nos moldes do cavaleiro medieval europeu); entretanto, como afirma o próprio professor Antônio Cândido, Alencar dá uma raça pura a uma nação de mestiços e um caráter lendário a um país sem história. A paisagem recebe forte impregnação poética e a mata virgem do Brasil foi apresentada como um recanto de maravilha e salvação.
José de Alencar e o Romantismo no Brasil
O descontentamento despertado pela nova ordem sócio-político-cultural instaurada com a ascenção da burguesia, a partir das revoluções liberais que sacudiram a Europa em fins do século XVIII, deu origem a atitudes saudosistas ou reivindicatórias que pontuam todo o Romantismo.
            A recusa da realidade presente levou o autor romântico a reconhecer no passado o tempo ideal, que devia ser resgatado, e a ressucitar os mitos de nação e herói.
            Ao mesmo tempo em que o estudo da história fazia-se para valorizar o passado e retorno às origens, acentuava-se o culto à Língua Pátria e ao folclore. Nessa volta ao passado, acreditou-se encontrar na Idade Média o que de melhor havia de tradição de cada povo.
            A essa valorização do passado remoto, que está na raiz do sucesso dos romances históricos, de Walter Scott, veio juntar-se o gosto romântico pelo exótico, reconhecível no americanismo de Chateaubriand e Fenimore Cooper. Nos romances desses autores, o que se encontra é uma intriga sentimental, ambientada em quadro histórico e local bem precisados, ensejando a reconstituição de paisagens, a evocação de figuras lendárias, a descrição de costumes.
            O romantismo brasileiro desenvolveu-se a partir de modelos europeus, mas num momento histórico particular: o Brasil acabava de conquistar sua independência e ansiava por afirmar sua nacionalidade; impunha-se, nesse momento, a necessidade de exaltar a brasilidade em oposição ao legado da colonização portuguesa.
            Desse modo, a nossa “Idade Média” só pode ser, ao menos poeticamente, o período pré-cabralino, em que a raça primitiva, o índio, vivia livre, em contato estreito com a exuberante natureza brasileira. Ou seja, à jovem nação importava construir uma mitologia que celebrasse a originalidade do Brasil ante a ex-metrópole e a Europa. Os românticos brasileiros, assim, fundam no indianismo o mito da nacionalidade.
            Indianismo não significa apenas tomar como tema e assunto da literatura o indígena e seus costumes. Muitos, na época, acreditaram que bastava falar de índios ou relatar episódios da nossa história que os envolvesse para fazer uma nova poesia, brasileira ou americana. Isso, de certa forma, já tinha sido feito por Basílio da Gama e Santa Rita Durão, no Uraguay e no Caramuru. Nessas obras, sobretudo no Uraguay, os indígenas aparecem, em alguns momentos, no mesmo plano que o português, sem que nenhum desses autores manifestem a intenção de realizar uma poesia nova ou americana.
            Tal realização implicava também e principalmente a construção de um novo ponto de vista e de uma nova visão do indígena, apreciado agora menos como realidade racial que como outra realidade ética e cultural, distinta da européia. A partir daí, o indígena surgiria não como um ser humano abaixo do europeu (como “bárbaro” ou “selvagem”) nem na mesma altura [...], mas acima, já que não fora contaminado pelos males da civilização
(Luis Roncari. Literatura Brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos)
Desse modo, o índio romântico brasileiro constrói-se como mito, portanto idealizado, a partir de dois modelos: o cavaleiro medieval e o bom selvagem de Russeau.
            Esse filósofo francês, em vez de considerar a civilização um prolongamento harmonioso da natureza, apontou os efeitos antinaturais, logo maléficos, da cultura.
            Os autores brasileiros mais fortemente vinculados ao indianismo foram Gonçalves Dias, na poesia e José de Alencar no romance.
Iracema (“lábios de mel”)
Argumento Histórico:
Em 1603, Pero Coelho, homem nobre da Paraíba, partiu como capitão-mor de descoberta, levando uma força de 80 colonos e 800 índios. Chegou à foz do Jaguaribe e aí fundou o povoado que teve o nome de Nova Lisboa. Foi esse o primeiro estabelecimento colonial do Ceará.
Como Pero Coelho se visse abandonado dos sócios, mandaram-lhe João Soromenho com socorros. Esse oficial, autorizado a fazer cativos para indenização das despesas, não respeitou os próprios índios do Jaguaribe, amigos dos portugueses.
            Tal foi a causa da ruína do nascente povoado. Retiraram-se os colonos pelas hostilidades dos indígenas; e Pero Coelho ficou ao desamparo, obrigado a voltar a Paraíba por terra, com sua mulher e filhos pequenos.
            Na primeira expedição foi ao Rio Grande do Norte um moço de nome Martim Soares Moreno, que se ligou de amizade com Jacaúna, chefe dos índios do litoral e seu irmão Poti. Em 1608 por ordem de D. Diogo Meneses voltou a dar princípio a regular colonização daquela capitania; o que levou a efeito, fundando o presídio de Nossa Senhora do Amparo em 1611.
            Jacaúna, que habitava as margens do Acaracu, veio estabelecer-se com sua tribo nas proximidades do recente povoado, para o proteger contra os índios do interior e os franceses que infestavam a costa.
Poti recebeu no batismo o nome Antônio Filipe Camarão, que ilustrou na guerra holandesa. Seus serviços foram remunerados com o foro de fidalgo, a comenda de Cristo e o cargo de capitão-mor dos índios.
            Martim Soares Moreno chegou a mestre de campo e foi um dos excelentes cabos portugueses que libertaram o Brasil da invasão holandesa. O Ceará deve honrar sua memória como de um varão prestante e seu verdadeiro fundador, pois que o primeiro povoado à foz do rio Jaguaribe não passou de uma tentativa frustrada.
Narrador
            O foco narrativo é em terceira pessoa, e leva a crer que temos um narrador-observador, porém o ufanismo faz com que, em certos momentos, o narrador apareça em primeira pessoa e deixe transparecer sua admiração e seu envolvimento. “Uma história que me contaram nas lindas vargens onde nasci”.
Enredo
                O narrador (em terceira pessoa) conta que um dia, Martim atravessou a Serra de Ibiapaba e quase foi ferido por Iracema.
Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulharam na face do desconhecido.
            De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida.
            O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara.”
Iracema, a virgem dos lábios de mel, tabajara habitante do sertão do Ipu, filha de Araquém, irmã de Caubi, veja a caracterização de Iracema:
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
            Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.
            O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
            Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.”
Iracema o leva para a oca de seu pai. Martim se torna protegido do chefe espiritual dos Tabajaras e une-se amorosamente com Iracema (que guardava o segredo da Jurema – erva alucinógina de árvore meã, com folhagem espessa; dá um fruto excessivamente amargo, de cheiro acre, do qual, juntamente com as folhas de outros ingredientes preparavam os selvagens uma bebida, que tinha o efeito de haxixe, de produzir sonhos tão vivos e intensos, que a pessoa sentia com as delícias e como se fossem realidade as alucinações agradáveis da fantasia excitada pelo narcótico. Ju – espinho, rema – cheiro desagradável). Observe atentamente a seguinte passagem: “... Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o segredo da Jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã.”
O pai de Iracema era o Pajé da tribo tabajara e ela o auxiliava em sua sagrada função de estabelecer contato com os deuses. Por essa razão, não poderia ser desvirginada por nenhum guerreiro. Contudo Iracema leva Martim ao lugar onde tal segredo se esconde como mostra o trecho:
Iracema quer que ele veja antes da noite a noiva que o espera.
Martim sorriu do ingênuo desejo da filha do Pajé.
- Vem! Disse a virgem (...)
Era de jurema o bosque sagrado. Em torno corriam os troncos rugosos da árvore de Tupã; dos galhos pendiam ocultos pela rama escura os vasos do sacrifício; lastravam o chão as cinzas de extinto fogo, que servira à festa da última lua. (...)
- Bebe!
Martim sentiu perpassar nos olhos o sono da morte; porém logo a luz inundou-lhe os seios d’alma; a força exuberou em seu coração. Reviveu os dias passados melhor do que os tinha vivido: fruiu a realidade de suas mais belas esperanças. (...)
- Iracema! Iracema!...
Já a alcança e cinge-lhe o braço pelo talhe esbelto.
Cedendo à meiga pressão, a virgem reclinou-se ao peito do guerreiro, e ficou ali trêmula e palpitante como a tímida perdiz, quando o terno companheiro lhe arrufa com o bico a macia penugem.
O lábio do guerreiro suspirou mais uma vez o doce nome e soluçou, como se chamara outro lábio amante. Iracema sentiu que sua alma se escapava para embeber-se no ósculo ardente...”
Martim a ama, despertando enorme ciúme em Irapuã, que sempre fora apaixonado pela virgem. Perseguidos pelos tabajaras, os amantes fogem e conseguem a proteção dos Pitiguaras, uma vez que Martim era amigo de Poti e seu irmão Jacaúna, grandes guerreiros Pitiguaras. Iracema não se sente bem, sob proteção Pitiguara, pois tudo na tribo a faz lembrar os seus parentes e amigos já mortos. Martim decide levar Iracema para um território neutro e o leal amigo Poti resolve segui-los. Depois de se estabilizarem próximos a um lago Martim recebe a notícia:
Travou da mão do esposo, e a impôs no regaço:
- Teu sangue já vive no seio de Iracema. Ela será mãe de teu filho.
- Filho, dizes tu? Exclamou o cristão em júbilo.
Ajoelhou ali e cingindo-a com os braços, beijou o seio fecundo da esposa”
Mas não demora muito, Poti é convocado para ajudar seu irmão Jacaúna nas guerras e Martim, também leal, o acompanha:
“Martim sorriu; e quebrando um ramo do maracujá, a flor da lembrança, o entrelaçou na haste da seta, e partiu enfim seguido por Poti.
Breve desapareceram os dois guerreiros entre as árvores. O calor do sol já tinha secado seus passos na beira do lago. Iracema inquieta veio pela várzea, seguindo o rastro do esposo até o tabuleiro. As sombras doces vestiam os campos quando ela chegou à beira do lago.
Seus olhos viram a seta do esposo fincada no chão, o goiamum trespassado, o ramo partido, e encheram-se de pranto.
- Ele manda que Iracema ande para trás, como o goiamum, e guarde sua lembrança, como o maracujá guarda sua flor todo o tempo até morrer.
A filha dos tabajaras retraiu os passos lentamente, sem volver o corpo, nem tirar os olhos da seta de seu esposo; depois tornou à cabana. Aí sentada à soleira, com a fronte nos joelhos esperou, até que o sono acalentou a dor em seu peito.”
Em meio a diversas batalhas travadas entre as tribos rivais, nasce Moacir, o filho de Iracema e Martim.
Iracema, sentindo que se lhe rompia o seio, buscou a margem do rio, onde crescia o coqueiro.
Estreitou-se com a haste da palmeira. A dor lacerou suas entranhas; porém logo o choro infantil inundou sua alma de júbilo.
A jovem mãe, orgulhosa de tanta ventura, tomou o terno filho nos braços e com ele arrojou-se às águas límpidas do rio. Depois suspendeu-o à teta mimosa; seus olhos então volviam de tristeza e amor.
- Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento”.
Ela morre pouco depois de dar a luz àquele que seria considerado o primeiro habitante do Ceará. Aliás, o subtítulo do Romance é “Lenda do Ceará”.
A triste esposa e mãe soabriu os olhos, ouvindo a voz amada. Com esforço grande, pôde erguer o filho nos braços, e apresentá-lo ao pai, que o olhava exático em seu amor.
- Recebe o filho de teu sangue. Era tempo; meus seios ingratos já não tinham alimento para dar-lhe!
Pousando a criança nos braços paternos, a desventurada mãe desfaleceu, como a jetica, se lhe arrancam o bulbo.
O esposo viu então como a dor tinha consumido seu belo corpo; mas a formosura ainda morava nela, como o perfume na flor caída no manacá
            A idéia de que o homem é um animal bom, corrompido pela sociedade, vem de Russeau e pertence ao pré-romantismo europeu. José de Alencar partilha desse conceito e o transforma numa convicção arraigada em sua imaginação poética. Há uma passagem em O Guarani, referente a Peri, a personagem central, muito reveladora dessa idéia: “O filho das matas, voltando ao seio de sua mãe [a natureza], recobrava a liberdade, era o rei do deserto, o senhor das florestas, dominado pelo direito da força e da coragem”.
            Com mais força do que naquele romance, essa idéia aparece dominante em Iracema, em que a índia, mais que uma personagem, é a própria natureza: “seu lábio é de mel, seu cabelo é como a asa da graúna, seu hálito é doce como a baunilha, seu talhe é de palmeira, seu andar é mais rápido que o da ema selvagem”. Essa fusão do homem com a natureza revela a enorme identidade de José de Alencar com o Romantismo poético, embora escreva em prosa. Mas é sabido que Iracema é um verdadeiro poema em prosa, pela força sugestiva de sua linguagem.
Além disso, Iracema é anagrama de “América”, isto é, ambas as palavras contêm as mesmas letras em ordem diferente. Essa estória é, assim, uma bela alegoria do contato entre a Europa e a América, com a devastação da América pela Europa.
Personagens:
Iracema: “a virgem dos lábios de mel, cabelos negros como asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira”. Guardiã do segredo da jurema, a filha do Pajé Araquém, possui atributos físicos e psíquicos rigorosamente concebidos de acordo com sua natureza selvagem, além de ser caracterizada como típica heroína romântica.
Martim: “tem nas faces o branco das areias que bordam o mar, nos olhos o azul triste das águas profundas”. Representa o colonizador europeu, um cavalheiro caracterizado pelas atitudes éticas da terra portuguesa de onde provém: a fé, a honra, a lealdade. Esse personagem: Martim Soares Moreno – é real, histórico, responsável pela colonização do Ceará, seu nome deriva de Marte – Deus da Guerra.
Moacir: filho do sofrimento da heroína, representa o primeiro brasileiro, fruto da união entre colonizador (o europeu) e colonizado (o índio).
Poti: Antônio Felipe Camarão, personagem histórico, um índio Pitiguara que simboliza a amizade dedicada aos portugueses.
Araquém: pajé da tribo Tabajara, pai de Iracema, representa a sabedoria da velhice.
Caubi: irmão de Iracema, o “senhor dos caminhos”.
Irapuã: “mel redondo”, chefe dos Tabajaras, inimigo de Martim. Apaixonado por Iracema.
Jacaúna: irmão de Poti, líder guerreiro da tribo Pitiguara.
Batuirité: avô de Poti, profetiza a destruição dos índios pelos brancos e nomeia Martim – Gavião Branco.
Tempo
O ano em que a ação se desenvolve é 1603, século XVII, época da colonização do Brasil, mais especificamente, no texto, na colonização do Ceará. Uma marca importante da passagem do tempo cronológico é a caracterização da mesma através da retratação da Natureza. Observe os exemplos:
O galo da campina ergue a poupa escarlate fora do ninho. Seu límpido trinado anuncia a aproximação do dia” (cap. V)
A alvorada abriu o dia e os olhos do guerreiro branco” (Cap. VIII)
O dia enegreceu; era noite já.” (Cap. XII)
Isso reflete uma maneira de aproveitar na linguagem, elementos da cultura indígena para melhor exprimir a idéia de um mundo primitivo.
Espaço
Assim inicia o livro:
“Verdes mares bravios de minha terra natal, onde a canta a jandaia nas frondes da carnaúba.
Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros
      Tais elementos nos fazem suspeitar de estarmos falando da Mata dos Cocais. A mata dos cocais, também conhecida como babaçual, localiza-se entre a Amazônia e a região nordeste, entre os climas equatorial, semi-árido e tropical. A vegetação torna-se mais exuberante à medida que se avança para oeste, em direção à floresta Amazônica
      No Maranhão, Piauí, parte de Tocantins e Ceará, encontram-se as palmeiras babaçu (coco-do-mato), carnaúba, buriti e outras espécies, que apresentam importante valor econômico para as indústrias de óleo e de gorduras vegetais. Do babaçu extrai-se o óleo que é destinado à indústria de produtos de limpeza (sabões) e de cosméticos. Da carnaúba extrai-se a cera e, do buriti fabrica-se doce.
A utilização do Ecótone: a Mata dos Cocais é uma zona de transição, um ecótone. A utilização de um ecossistema de transição permite que o autor crie situações de seca e de chuva, com florestas ou sertão; explorando clima e biodiversidade para criar um ambiente que esteja próximo ao sentimento das personagens ou do eu criador (como é próprio do romantismo) sem que se possa duvidar da veracidade dos acontecimentos climáticos. O livro todo gira em torno dessa incerteza sobre o que é real, histórico e o que, de certa forma, cede aos anseios românticos da idealização.
Linguagem
Numa carta enviada ao Dr. Jaguaribe, em agosto de 1865, Alencar assim se referiu à obra:
O conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a nacionalidade da literatura. Ele nos dá não só o verdadeiro estilo, como as imagens poéticas dos selvagens, os modos de seu pensamento, as tendências de seu espírito, e até as menores particularidades de sua língua.
É nessa fonte que deve beber o poeta brasileiro; é dela que há de sair o verdadeiro poema nacional como eu imagino.”
É importante lembrar que há um descritivismo forte sobre elementos da natureza, paisagens, fatos, personagens, fazendo a adjetivação, importante etapa do processo criativo da obra.
EXERCÍCIOS
1) Leia o trecho abaixo pertencente ao romance Iracema, de José de Alencar, e assinale a alternativa correta:
Além, muito além daquela serra que se azula no horizonte, nasceu Iracema
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da Jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara. O pé grácil e nu mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas”.
a)       Há a fusão do homem com a natureza na figura de Iracema, que representa a mata virgem do Brasil.
b)       Iracema é a heroína idealizada tipicamente romântica, com alguns traços de realismo nascente.
c)       Trata-se de um romance urbano, em que a idealização do índio dará lugar mais tarde à miscigenação
d)       O Romance indianista tenderá para o final feliz, por se tratar de um romance tipicamente romântico.
e)       A idealização de Iracema se dá da mesma forma que a de Leonardo em Memórias de um Sargento de Milícias, outro livro romântico, porém de caráter urbano.

2) (FUVEST) Em Iracema, Alencar procura aproveitar na linguagem, elementos da cultura indígena para melhor exprimir a idéia de um mundo primitivo. Um desses elementos é o modo de medir a passagem do tempo. Como faz o romancista para marcar a passagem do tempo?

3) Todas as afirmativas são verdadeiras quanto à obra Iracema, de José de Alencar, exceto:
a) O título da obra pode ser considerado anagrama de América, indício de caráter indianista.
b) Iracema e Martim representam respectivamente, o mundo selvagem e o mundo civilizado.
c) A amostragem da formação da nação brasileira é propósito da construção da narrativa.
d) O nome da personagem Moacir, filho de Iracema e Martim, significa o “filho do sofrimento”.
e) Poti, como “Bom selvagem”, mostra a integridade do indígena.

4) O índio, em alguns romances de José de Alencar, como Iracema e Ubirajara, é:
a) retratado com objetividade, numa perspectiva rigorosa e científica;
b) idealizado sobre o pano de fundo da natureza, da qual é o herói épico;
c) pretexto episódico para descrição da natureza;
d) visto com desprezo do branco preconceituoso, que o considera inferior;
e) representado como um primitivo feroz e de maus instintos.

5) Sobre Iracema é incorreto afirmar que:
a) o relacionamento entre Martim e Iracema seria uma alegoria das relações entre metrópole e colônia;
b) Iracema é descrita de uma forma idealizante, comparada com elementos da natureza, característica própria do romantismo;
c) o personagem Martim é lendário; nunca existiu, tratando-se portanto de uma figura fictícia;
d) Moacir, que em tupi quer dizer “filho da dor”, é levado por Martim para Europa;
e) o romance é narrado em terceira pessoa, com narrador onisciente.

6) “O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí uma predestinação de uma raça?”
Eis aí uma reflexão sob a forma de pergunta que o autor,........., faz a si mesmo com toda propriedade, e por motivos que podemos interpretar como pessoais, ao finalizar o romance...................... . Assinale a alternativa que completa os espaços.
a)       José Lins do Rego – Menino de Engenho
b)       José de Alencar – Iracema
c)       Graciliano Ramos – São Bernardo
d)       Aluísio Azevedo – O Mulato
e)       Graciliano Ramos – Vidas Secas.




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