segunda-feira, 4 de outubro de 2010

FUVEST/UNICAMP 2010 – AULA DE LIVRO

FUVEST/UNICAMP 2010 – AULA DE LIVRO

DOM CASMURRO
(Machado de Assis)

O REALISMO NO BRASIL
O Brasil do Segundo Reinado (1840-1889), em que viveu Machado de Assis, caracteriza-se fundamentalmente pelo poder econômico e político da oligarquia rural, que se expressava via latifúndio, monocultura e mão-de-obra escrava.
Mas, a partir de 1870, com o crescimento da indústria cafeeira do interior de São Paulo, tornava-se urgente a necessidade de mudanças estruturais, no sentido da modernização do país.
Tais mudanças, representadas principalmente pela defesa da Abolição e da República, por sua vez implicavam a importação das idéias liberais européias, vistas como sintomas de avanço e progresso.
No plano cultural, chegavam-nos as doutrinas positivistas e deterministas que acompanhavam o advento da literatura pós-romântica — o Realismo, o Naturalismo, o Parnasianismo — embora tal cosmopolitismo não se harmonizasse com nossa estrutura econômico-política ainda provinciana, isto é, de base escravocrata, monárquica, oligárquica e latifundiária.
Nesse contexto de flagrante contradição entre atraso e modernidade, destaca-se 1881, o ano da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e de O Mulato, de Aluísio Azevedo, como a data oficial do surgimento do Realismo e do Naturalismo no país.
Como assinala Lúcia Miguel Pereira, “o ano de 1881 foi um dos mais significativos e importantes para a ficção no Brasil, pois que nele se publicaram as Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis [...] e O Mulato de Aluísio Azevedo. [...] Havia [...] nesses dois livros de índole tão diversa, um traço comum: em ambos triunfara a observação. [...] Dois escritores patenteavam repentinamente uma liberdade até então desconhecida, e conferiam assim ao romance um novo alcance. Começou-se a escrever para procurar a verdade, e não mais para ocupar os ócios das senhoras sentimentais e de um ou outro cavalheiro dado a leituras frívolas.
LÚCIA MIGUEL PEREIRA, História da Literatura Brasileira — Prosa de Ficção: de 1870 a 1920, Rio de Janeiro, José Olympio / MEC, INL, 1973.

Dados Biográficos
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 1839, no Morro do Livramento, Rio de Janeiro, e faleceu, também no Rio, em 1908, aos 69 anos. Filho de um pintor e de uma lavadeira, ambos muito pobres, ficou órfão muito cedo.
Mulato, tímido, míope, gago e epilético, conseguiu, no entanto, sobreviver, fazendo carreira como funcionário público e escritor. Aos 16 anos, trabalhou como aprendiz de tipógrafo, em jornais da Imprensa Nacional. Dois anos depois, tornou-se revisor de uma editora e em seguida do Correio Mercantil.
Em 1860 passou a trabalhar na redação do Diário do Rio de Janeiro, colaborando na seção “Semana Ilustrada”.
Autodidata, foi conquistando vasta cultura literária e, embora escrevesse críticas teatrais e literárias, crônicas, artigos políticos, contos e peças de teatro, a princípio ganhou nome como poeta.
Aos 30 anos, casou-se com Carolina Xavier de Novais e desde então fez carreira burocrática, na qual ascendeu e permaneceu até a morte. Foi um dos fundadores e presidente da Academia Brasileira de Letras; ao longo de mais de 50 anos de vida literária colaborou em inúmeros jornais e revistas.

OBRA
Sem dúvida um dos maiores escritores em prosa da literatura brasileira, Machado de Assis é um autor múltiplo, inventivo, original. Iniciou o Realismo brasileiro, em 1881, com Memórias Póstumas de Brás Cubas, na mesma obra superando-o e dando um salto para a modernidade literária, por meio de seu estilo anti-retórico, substantivo, digressivo e metalingüístico.
Outros romances fundamentais de Machado, na mesma direção das Memórias..., são Quincas Borba, Dom Casmurro e Memorial de Aires, embora, de acordo com boa parte da crítica, o melhor do que escreveu esteja nos contos.
A análise psicológica que anuncia a psicanálise, o humor sutil e permanente, a visão metafísica relativista de todos os valores, a sutilíssima e constante ironia, o implacável pessimismo sobre a natureza e as relações humanas constituem os principais traços machadianos, que atravessam e desafiam o tempo.

PRINCIPAIS TÍTULOS
— Poesia: (em que desenvolveu estilo parnasiano) Crisálidas; Falenas; Americanas; Poesias Completas.
— Romance: a) Fase romântica: Ressurreição; A Mão e a Luva; Helena; laiá Garcia. b) Fase realista: Memórias Póstumas de Brás Cubas; Quincas Borba; Dom Casmurro; Esaú e Jacó; Memorial de A ires.
— Conto: Contos Fluminenses; Histórias da Meia-Noite; Papéis Avulsos; Histórias sem Data; Várias Histórias; Páginas Escolhidas; Relíquias da Casa Velha.
— Teatro: Queda que as Mulheres Têm pelos Tolos; Desencanto; Quase Ministro; Os Deuses de Casaca; Tu, só Tu, Puro Amo,
Joaquim Maria Machado de Assis é o nosso mais completo, denso e impressionante fenômeno literário. Sozinho, ele relativiza as fragilidades culturais e a falta de historicidade que nos caracterizam, valendo por toda uma tradição, e das mais refinadas. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas ousadamente varriam-se de um golpe o sentimentalismo, o moralismo superficial, a fictícia unidade da pessoa humana, as frases piegas, o receio de chocar preconceitos, a concepção do predomínio do amor sobre todas as outras paixões; afirmava-se a possibilidade de construir um grande livro, sem recorrer à natureza, desdenhava-se a cor local, colocava-se um autor pela primeira vez dentro das personagens; surgiam afinal homens e mulheres, e não brasileiros, ou gaúchos, ou nortistas [...], introduzia-se entre nós o humorismo.
A independência literária, que tanto se buscara, só com este livro foi selada.
Independência que não significa, nem poderia significar, auto-suficiência, e sim o estado de maturidade intelectual e social que permite a liberdade de concepção e expressão.
LÚCIA MIGUEL-PEREIRA, Prosa de Ficção: de 1870 a 1920, Rio de Janeiro,
José Olympio / MEC, 1973.

UMA AMBIGUIDADE INSOLÚVEL
(Fábio Lucas)
                Publicado em 1899, Dom Casmurro integra, com Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1891), a trilogia mais famosa das obras de Machado de Assis. Uma particularidade o distinguia dos outros, quando apareceu nas livrarias do Rio de Janeiro no início do século XX: não fora divulgado em periódico. Enquanto a primeira versão de Memórias póstumas de Brás Cubas surgiu na Revista Brasileira e a de Quincas Borba era apresentada, a partir de junho de 1886, no jornal Estação, Dom Casmurro começou a circular em volume, pois fora concebido para uma versão definitiva.
                Talvez esse aspecto de peça acabada, que guarda desde o início, tenha feito recair sobre ela o mais alto entusiasmo da crítica, ao mesmo tempo em que o público tem acolhido com interesse o famoso relato de um amor desenganado. Assim, podemos assinalar dois estudos que cuidaram exclusivamente de dom Casmurro: The Brazilian Othello of Machado de Assis – A Study of Dom Casmurro (University of Califórnia Press, Berkeley, 1960) de Helen Caldwell e O enigma de Capitu (Rio, José Olympio, 1967) de Eugênio Gomes.
                Para a primeira, temos o mais belo romance de toda a América, ao passo que o autor, Machado de Assis é uma jóia que os brasileiros possuem, digna de inveja do resto do mundo. A tônica do estudo de Helen Caldwell incide sobre a natureza do ciúme que impregna o enunciado de Bentinho, o Dom casmurro, titular da fala e da visão do mundo da narrativa. A ensaísta americana, também tradutora de Dom Casmurro ao inglês, busca demonstrar as impregnações shakespearianas do romancista brasileiro, além de tentar, um tanto imaginosamente, decifrar alusões escondidas por detrás dos nomes próprios empregados por Machado de Assis. Assim, Santiago seria um composto de Santo + Iago, a fusão do bem e o mal que existem em cada um de nós, já que, no drama Othello, Iago representa a consciência perversa que atormenta o bom Othelloo.
                Deste modo, as indagações básicas que Helen Caldwell encontrou em sua leitura de dom Casmurro foram principalmente de fundo conteudístico: teria sido capitu culpada de adultério? Por que escrever um romance a respeito, se se transfere a decisão sobre a culpa ou a inocência ao leitor? O romance não passaria de um memorial de acusação do depoente/vítima/narrador, Bento Santiago.
                Eugênio Gomes resolveu enfrentar o mesmo tipo de questionamento, valendo-se de meticuloso levantamento de tópicos estilísticos e de textos comparados, a fim de desvendar o conteúdo da obra e as intenções secretas do autor por meio dos elementos constitutivos do processo criador. Daí o “enigma” de Capitu. Depois de considerar Dom Casmurro como a “narrativa mais ambígua da literatura nacional”, não deixa de externar seu entusiasmo pela obra: “O romance Dom casmurro pode ser incluído entre os mais notáveis do gênero, não já brasileiro, mas universais, cujo manancial de sugestões não se esgota nunca, obrigando por isso mesmo a crítica a tê-lo sempre sob a alça de mira”.
                Embora reconhecendo os méritos da investigação comparativista na elucidação de alguns aspectos da obra, hoje somos obrigados a encarar o desempenho de Machado de Assis sob outro ângulo. Está certo que o romancista restaura a seu modo o triângulo amoroso, um dos mais fortes concorrentes da tradição romanesca. Ocorre, entretanto, em Dom Casmurro, uma triangulação ideal que traduz a certeza de uma consciência conturbada, a de Bentinho, e resulta, para o destinatário de seu discurso mesclado de objetividade e de ressentimento (subjetividade), numa ambigüidade insolúvel. Mas o principal, perante os olhos contemporâneos, reside na validade do texto, sua particular eficácia estética, seu valor como saída para o narrador, sua autonomia como instaurador de um universo próprio, sua remissão à necessidade verbal como fonte do ser. Sob este aspecto, a melhor pergunta haverá de ser: Por que relatar um fato passado para restabelecer a verdade, ainda que esta não passe de uma transitória e vulnerável verdade subjetiva?
                Ao procurar o tempo perdido, “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”, Santiago, narrando no presente, busca desafortunadamente retocar um quadro já inscrito no passado. A narrativa é o único ato liberador possível. Daí, fingindo presente, o narrador tentar evadir-se do passado e, ao mesmo tempo, labora um questionamento sobre a integridade do ser e sobre o rendimento da escrita. A parte nuclear do entrecho encontra-se ao redor da tríade Bento-Capitu-Escobar. A arte de Machado de Assis faz-nos ver um duplo Dom Casmurro, uma dupla Capitolina, um Escobar ambíguo. A obra, por ser um texto literário e, assim, polivalente, flanqueia muitas entradas.
                O titular da fala é Bentinho. Por sua voz é que identificamos as demais personagens, incluindo-se a própria Capitu, considerada uma das mais fascinantes personagens femininas da literatura brasileira. O cerne, pelo visto, constitui o ponto de vista do narrador, que se propõe viver, pela escrita, o vivido: “deste modo”,- diz – “viverei o que vivi”, no capítulo II, em que fala do livro e da casa que mandou construir no engenho Novo, que reproduzisse a antiga, na Rua de Matacavalos. Conta que pensou escrever uma História dos Subúrbios e que “os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns”.
                Por baixo do drama de Bentinho entremostra-se o drama do escritor que procura resgatar-se por intermédio da escrita. Como a obra vem a ser também um testemunho de convívio com a mais apurada literatura universal, o narrador alude às sombras evocadas no Fausto: “Aí vindes outra vez, inquietas sombras...?”
                Bentinho, ao relatar os episódios de sua vida, o faz com a consciência de escritor e em várias ocasiões exprime o desejo de publicar um livro (v. cap.II, LI, LX, LXIX). Ademais, numerosas reflexões sobre a arte de escrever e de narrar podem ser encontradas ao longo de Dom Casmurro. Por exemplo, a questão do estilo equilibrado entre o aticismo do documento e o asiatismo da paixão incontrolada: “Há nisto alguma exageração; mas é bom ser enfático, uma ou outra vez, para compensar este escrúpulo de exatidão que me aflige. Entretanto, se eu me ativer só à lembrança da sensação, não fico longe da verdade; aos quinze anos, tudo é infinito” (cap.L).
                E o narrador, ao formar a consciência da descontinuidade de seu discurso, delega ao leitor a tarefa de preencher as lacunas, pois “tudo se pode meter nos livro omissos” (v.cap.LIX). A seguir, no capítulo LX, vamos encontrar uma espécie de profissão de fé no realismo interior: “Já agora creio que não basta que os pregões de rua, como os opúsculos de seminário, encerrem casos, pessoas e sensações; é preciso que a gente os tenha conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo é calado e incolor”. E, adiante, o relator bate na tecla da ambigüidade, acentuando, como é do seu gosto, a natureza relativa das coisas, vida e arte:”...mas nem tudo é claro na vida ou nos livros” (cap.LXXVII).
                Cremos que a necessidade de exteriorização de episódios passados explica grande parte dos significados encontráveis em Dom Casmurro. Se vale a interpretação de que a personagem narradora intenta redimir-se de um fracasso contando-o enfaticamente, sob a forma de um memorial de acusação, temos de considerar o relatório como força re-constitutiva do protagonista e fixadora da imagem dos demais figurantes. Assim, toda a galeria de personagens, coada por uma sensibilidade, busca projetar-se na consciência dos destinatários da mensagem, os leitores, completando-se o ciclo da informação.
                Muitos capítulos de Dom Casmurro encerram algumas reflexões sobre o escoar implacável do tempo. Indicaríamos à observação dos leitores os seguintes: II, XVII, LXIV, e CXLVIII. Aliás, o tema está difuso por toda a narrativa. O capítulo “os vermes” contém uma forte representação da impossibilidade do tempo em seu fluir, inteiramente indiferente à substância dos textos roídos. Mas a vacuidade dos textos e da força vital não se mostra suficiente para conter o impulso da escrita. Prova-o o próprio romance. A elaboração prospectiva da imaginação se alimenta em grande parte dos resíduos acumulados pela memória: “donde concluo que um dos ofícios do homem é fechar e apertar muito os olhos, a ver se continua pela noite velha o sonho truncado da noite moça” (cap. LXIV).
                Sendo o núcleo do núcleo narrativo o depoimento de Bentinho, personagem narradora, podemos admitir que seu discurso contém um problema de identidade e de autoconhecimento. Vale dizer que a confissão literária é o veículo atravessado pela reflexão da personagem sobre si mesma. Se os motivos do Panegírico de Santa Mônica (cap.LIV), do soneto (cap.LV), troçam de certa forma da falácia da ilusão literária, o motivo do barbeiro (cap.CXXVII) não deixa de exaltar a arte, uma ilusão superior às traições da vida.
                O drama do autoconhecimento implica uma captação contínua da própria imagem buscada nos olhos dos outros. Então, conhecer-se ficará dependente do reconhecimento praticado pelos outros. Daí o tema da opinião perpassar toda a obra de Machado de Assis. Também em Dom Casmurro o encontramos, embora disseminado em vários trechos. De modo mais objetivo, basta que contemplemos os capítulos “O administrador interino” e “O protonotário apostólico”.
                Muitas vezes é difícil isolar os fundamentos temáticos da obra, pois eles proliferam num sem-número de motivos livres, de alusões itinerantes, de sugestões que voltam e se repetem, formando uma polifonia carregada de sentido. Daí a relativa independência de certos capítulos, concentrados em determinada alegoria moral ou filosófica. Aliás, a espessura daqueles comentários é tal nos melhores romances de Machado de Assis que não fica mal enquadrá-los no gênero “Romance filosófico”. Dom Casmurro se amolda a essa natureza.
                Ao acompanharmos o “eu” narrador do romance, caminhamos pari passu com o protagonista na busca do “eu central”, fraturado nas circunstâncias da história, isto é, da vida fluida. Conforme já assinalamos, o narrador figura como elemento constitutivo da íntegra. Seu itinerário se processa antes entre evocações cerebrais do que entre episódios fulminantes, como é da tradição do romance de aventuras. Neste caso, a agitada movimentação no exterior, muitas vezes submetida a forçar a causalidade, como ocorria no romance de cavalaria, no picaresco ou no folhetim romântico, cede passo ao intenso movimento interior, cheio de idas e vindas ao redor do “eu” que se questiona.
                Machado de Assis, como romancista, manifestou possuir um senso perfeito do processo literário. Enquanto articulava o enredo, meditava sobre a realização deste na sua forma verbal. Tanto que, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, zomba do leitor que “prefere a anedota à reflexão” (cap. IV).
                Em Dom Casmurro o relator se coloca, conforme vimos, na atitude do observador da própria obra em progresso. O seu “eu” se encontra distribuído nas diferentes personagens, dividido em partículas de impressões sobre os outros. E, para recompor-se de seu fracionamento, apela para a colaboração de todos, inclusive do leitor, tantas vezes apostrofado.
                Deste modo, em Dom Casmurro, o processo de enunciação é constantemente lembrado, estabelecendo um nexo entre a trama romanesca, cuja finalidade é deleitar e comover o leitor, e o processo ideativo, cuja sede está nos comentários livres que se mesclam à trama e a integram, com finalidade docente, expandindo a espessura filosófica do texto e convidando o leitor a meditar sobre a trajetória humana.
                Machado de Assis acabou criando um narrador autoconsciente, Dom Casmurro, que se individua pela comunicação escrita e, dada a natureza do sistema de signos em que se apresenta, destina-se a se perpetuar coreograficamente perante as gerações, dançando significados diferentes, enquanto ensina, comove e deleita. O romancista desperta a atenção do leitor para o fato de que o pseudo autor é um artifício, ainda que a gestação do texto seja algo tão importante quanto seu conteúdo de tal modo que enunciar é também viver – tempo e texto fluem no mesmo leito existencial.

DOM CASMURRO

Narrador
O foco narrativo deste romance é em primeira pessoa, e o narrador é Bento Santiago, personagem principal do romance. A obra é toda enfocada no ponto de vista desse narrador ciumento e possessivo. Vejamos uma síntese do enredo do livro:

Enredo

Bento Santiago mandou construir no bairro do Engenho Novo uma casa nos moldes da casa em que vivera na Rua de Matacavalos. Mas, para fazer uma nova casa, se a casa velha ainda era de sua propriedade? A razão era simples. E que nem a casa de Matacavalos o reconhecia, nem Bentinho se reconhecia nela. “No quintal, a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba velha e o lavatório nada sabiam de mim”. Então deixou que a demolissem. E a nova casa saiu no modelo perfeito da antiga, inclusive as ilustrações clássicas, e mais: chacarinha, casuarina, poço... Com esta realização nostálgica. O narrador do romance, que é o próprio Bento Santiago, pensava “atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência”.  Mas logo verificou ser possível esta operação. “Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente”. Bento percebe a irreversibilidade das transformações do tempo: “se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos, e esta lacuna é tudo.” Não se pense, entretanto, que Bento vivesse a chorar o tempo de outrora. Pelo contrario, agora, cinquentão, ele passa a vida a hortar, jardinar e ler. Comia bem, e não dormia mal. É certo que isso não podia representar tudo para ele. E por isso mesmo ele se decidirá a escrever um livro. Pensou inicialmente em compor uma história de subúrbios carioca, mas logo desistiu. Porque não escrever então a história de sua vida, procurando com isso obter o efeito de recuperação do passado que a construção da casa não lhe tinha propiciado? Esta é no relato do narrador, a origem do livro que estamos lendo. Quanto ao titulo D. Casmurro, ele se deve a um apelido que o narrador recebera de um vizinho. Indignado contra bentinho, porque este não se impressionara nada com os versos que ele lhe mostrara, o moço espalhou o apelido pela vizinhança. E ate certo ponto Bentinho julga merecer o apelido de Casmurro, pelo menos se se tomasse essa palavra no sentido de “homem calado e metido consigo”. Mas, notem, o móvel principal de bentinho, foi a tentativa de restaurar o passado pelo emprego de processos de imitação e semelhança. E, não só com a casa nova, mas com sua própria imagem de agora, ele se desconsola.
            Tinha Bentinho seus sonhadores quinze anos, quando lhe ocorreu o primeiro fato que ele julgou importante registrar na narrativa. Antes, porém, será necessário apresentar o quadro familiar. A mãe de Bentinho era viúva. Tinha então 42 anos e era bonita. Conservava os rigores do luto. Tio Cosme, também viúvo, morava com ela. Era advogado. E tia Justina completava a “casa dos três viúvos”. Justina era propensa à maledicência. José Dias era um agregado da casa, já há muitos anos, desde que aparecera ao pai de Bentinho, fazendo-se passar por médico homeopata. “Amava os superlativos.era um modo de dar feição monumental às idéias; não as havendo, servia a prolongar as frases (...) Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez nesse mundo”. Havia também um amigo da família, padre Cabral, que costumava jogar gamão com tio Cosme, e iniciara Bentinho no ensino das primeiras letras.
Mas havia, também, os vizinhos, “a gente do Pádua”, e é daí que vai eclodir o motivo decisivo no destino do narrador. A filha do Pádua e de D. fortunata era Capitolina, que todos chamavam Capitu. Era companheira da infância de Bentinho. José Dias, o agregado, não gostava do Pádua, por achá-lo reles.
Voltemos aos 15 anos do narrador. Numa tarde de novembro de 1857, ia Bentinho entrar na sala de visitas, quando percebeu que falavam dele. Escondeu-se atrás da porta. Era José Dias, que falava à D. Glória, lembrando-lhe a promessa de mandar Bentinho ao seminário. José Dias na verdade estava incomodado com o carinho que tomavam as brincadeiras de Bentinho e Capitu. E dizia que esta última tinha olhos de “cigana oblíqua e dissimulada”. D. glória, em prantos, concordou. Tio Cosme também. D> Glória sofria, com o pensamento de separar-se do filho. Que fazer? Era uma promessa. A família era muito católica.
“Verdadeiramente foi o princípio da minha vida”, diz o narrador. Lembrou-se de um tenor, que lhe disse, muito tempo depois, que a vida era uma ópera. Deus teria feito o liberato dessa ópera, tendo-o depois abandonado. O diabo se aproveitou, e pôs-lhe a música. Daí teria vindo nosso planeta. Repare-se: uma idéia fundamental, como outras no livro, surge do terreno da natureza da composição artística, em sua capacidade de explicar este nosso mundo. Mas, voltemos à promessa. Qual teria sido a promessa da mãe de Bentinho? D. Glória, tendo-lhe nascido morto o primeiro filho, prometeu a Deus que, se viesse a ter um segundo, este seria sacerdote, serviria aos desígnios de Deus. Isto vem a determinar um dos  conflitos importantes do romance. Conflito que adormeceu durante uns16 anos. De repente, ele emerge da fala de José Dias, e passa a ser decisivo na vida de Bentinho, que não queria ir para o seminário. Trata-se de um problema da viúva, e que afetava agora radicalmente a vida de seu filho. De nada tinha adiantado que ela tivesse educado Bentinho com sugestões religiosas de todo o tipo. O filho não queria ser padre, sobretudo num momento em que começava a despertar para o amor. E as palavras de José Dias a D. glória vinham a demonstrar exatamente isso, sobretudo ao próprio Bentinho, que não se havia dado conta ainda do que sentia por Capitu: “Sempre juntos...” “Em segredinhos...” “Se eles pegam de namoro...”
Capitu, momentos depois, perguntou a Bentinho o que se passava com ele.”-Eu?  Nada./Nada, não; você tem alguma cousa. – Quis insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca afora. Não podia tirar os olhos daquela criaturinha de 14 anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor; não cheirava a sabões finos nem águas de toucador, mas com água de poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos”.
Pode-se perceber, não só através desta descrição, mas de outras referências, que a família de Capitu, se não era totalmente pobre, era com certeza bem mais modesta que a família de Bentinho. E este é um aspecto que não pode ser subestimado, na evolução da intriga. Mas a inferioridade financeira da “gente do Pádua” vai ser contrabalançada com a superioridade “mental” de Capitu, e com o fato de que era principalmente Bentinho que a procurava e parecia precisar mais dela do que ela dele. O que, aliás, não passa de aparência. Neste aspecto, a arte de Machado, com muita fineza, vai mostrando como Capitu, mais amadurecida do que Bentinho, sabe mais das relações familiares tortuosas e dos caminhos corretos para se chegar às soluções desejadas. Claro fica que Capitu, em alguns momentos da conversa que teve com seu namorado, raciocinava como pessoa adulta, ao passo que este se perdia na confusão emocional, sem vislumbrar qualquer estratégia para escapar ao seminário. Bentinho se perdia facilmente em seu próprio imaginário. Pensava em falar com o Imperador, que intercedesse em favor dele... Foi Capitu quem aconselhou, como primeira providência, que Bentinho procurasse justamente José Dias, e lhe desse conhecimento de que não queria ir para o seminário. Entretanto, ele aceita ir estudar Direito em São Paulo.
Bentinho decorou o papel. José Dias aproveitou o passeio com Bentinho para falar mal do pádua e criticar Capitu, mas num dado momento, Bentinho entrou no assunto: “Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre (...) Conto com o senhor para salvar-me etc”. José Dias ficou estupefato, mas não suficientemente para esconder o reflexo de uma idéia, que lhe brilhou no rosto. Embora ele dissesse que já devia ser tarde para demover D. glória, concordou em “que as leis são belas, sem desfazer na teologia, que é melhor que tudo, como a vida eclesiástica é a mais santa”. Mas achou boa a idéia de que Bentinho quisesse estudar Direito em São Paulo; mais ainda, conhecer a Europa... José dias sonhava conhecer a Europa. Era, também para ele, a grande oportunidade: “Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo!”
Capitu aceitou, sem dificuldade, a idéia da Europa. “Capitu era Capitu, isto é uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem”. E Bentinho quis confirmar o que denunciara José Dias, sobre os olhos de Capitu, olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Olhou-os bem: “Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra de dignidade de estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido enérgico e misterioso, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-ma às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve.”
No meio dos cumprimentos recebidos por padre Cabral, por ter enfim ascendido ao posto de protonotário apostólico, José Dias começa a entrar em ação. Faz recair a conversa sobre a carreira sacerdotal, considerando que só devia ser padre quem trouxesse do berço a vocação. Mas Bentinho, depois, antecipando-se ao que combinara com José Dias, falou à mãe de seus planos. D. Glória insiste na obrigação da promessa. Não há jeito. Bentinho terá mesmo de ir para o seminário.
Meses depois entrou Bentinho para o seminário. Padre Cabral tinha feito reparos: “A senhor não podia pôr em seu filho, antes de nascido, uma vocação que Nosso Senhor lhe recusou”. José Dias concordou, e, depois, chegando-se a Bentinho: “Vá por um ano; um ano passa depressa. Se não sentir gosto nenhum, é que Deus não quer, como diz o padre, e nesse caso, meu amiguinho, o melhor remédio é a Europa”. Capitu, resignada, era da mesma opinião. Começará então uma estreita convivência entre Capitu e D. Glória. A sós Capitu e Bentinho juram que um dia haveriam de casar-se: “Juramos novamente que havíamos de casar um com o outro e não foi só aperto de mão que selou o contrato, como no quintal, foi a conjunção de nossas bocas amorosas”.
Dos colegas de seminário, Bentinho apreciava sobretudo a Ezequiel de Souza Escobar. “Era um rapaz esbelto, olhos claros um pouco fugidios, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo... Não fitava de rosto, não falava claro, nem seguido.”
Um dos mais significativos momentos de Bentinho foi aquele em que pensou que uma possível morte da mãe viria a favorecê-lo no projeto de sair do seminário. D. Maria da Glória tinha piorado de sua doença, mandou José Dias buscar Bentinho. José Dias disse a este que o estado de D. Glória era gravíssimo, por hábito dos superlativos. Bentinho arrependeu-se logo do pensamento que tivera. Foi ouvir a Missa de Santo Antônio dos Pobres. Orou contritamente. Pensou em confessar-se. “Receei não achar palavras com que dizer ao confessor o meu segredo. Como o homem muda! Hoje chego a publicá-lo.”
Ao sair dessa missa, sinhazinha Sancha, uma amiga de Capitu, pediu ao pai que lhe perguntasse a ele, Bentinho, sobre o estado de saúde de sua mãe. Gurgel – era esse seu nome – convida, depois, Bentinho a estar em sua casa. Este declina do almoço, mas lá ficou alguns minutos a conversar. Sancha mandou lembranças à D. Glória e Capitu.
Naquele mesmo dia, Escobar fez uma visita a Bentinho. Ficou para jantar. Na saída, Capitu pareceu estranha-lo: “-que amigo é esse tamanho?” perguntou. Depois de alguns momentos, passou um moço elegante a cavalo. Olha para Capitu e Capitu também olha para ele. Bastou para que o ciúme de Bentinho se acendesse um pouco. Não obstante, no dia seguinte, no seminário, Bentinho fala a Escobar sobre seu romance com Capitu, e a coloca nas alturas.
Com o tempo, D. Glória foi melhorando. Algo de melhor também se passava em seu espírito. De fato, começara ele a pensar que, caso o filho deixasse o seminário, ela pelo menos estaria desincumbida de sua promessa. O filho é que estava decidindo. Ademais, Capitu estava com ela todas as horas, companheira amorosa, e é possível que a mudança viesse um pouco dessa companhia e dessa influência. E, num sábado, ao chegar a sua casa o seminarista, foi surpreendido por um conselho de sua mãe, para que ele procurasse Capitu (na casa de Sancha), foi. O que importa ressaltar aqui é a pergunta que Gurgel fez a Bentinho, acerca de um retrato que estava na parede de sua casa. Gurgel perguntou se não achava a moça do retrato parecida com Capitu. Bentinho automaticamente respondeu que sim, mas viu depois que a figura do retrato realmente era muito parecida com Capitu. “Então ele disse que era a mulher dele, e que as pessoas que a conheceram diziam a mesma coisa”. Gurgel, que conhecia bem Capitu, disse que no gênio de ambas também havia muita semelhança. Ora, como se verá depois, todas as grandes convicções do narrador parecem repousar em questões de semelhança. “Na vida há semelhanças esquisitas”, observou Gurgel.
Enfim, estava chegando o tempo em que Bentinho deveria sair do seminário. José Dias chegou a pensar que uma viagem para Roma, para pedir absolvição ao papa... Escobar é que deu a idéia boa: Bentinho deixaria o seminário com a condição de que D. Gloria adotasse algum órfão e o submetesse aos estudos para padre. Daria assim um sacerdote à Igreja. Deu certo. “Saí do seminário no fim do ano. Tinha então pouco mais de 17”. 5 anos depois, regressava de São Paulo, bacharel em Direito. Escobar igualmente saíra do seminário e começava, por aquela época, a “negociar em café, depois de haver trabalho durante 4 anos numa das primeiras casas do RJ”. Bentinho se casou com Capitu. Escobar também se casou com Sancha, quase irmã de Capitu. O escritório de Bentinho prosperava, e Escobar, com suas relações, tinha concorrido para o êxito do amigo. Escobar e Sancha tiveram uma filhinha – a Capituzinha. Muito visitavam os dois casais. Mas Bentinho e Capitu lastimavam não haverem tido ainda um filho.
Mas veio o filho afinal. “A minha alegria quando ele nasceu, não sei dizê-la; nunca a tive igual, nem creio que possa haver idêntica, ou que de longe ou de perto se pareça com ela. Foi uma vertigem e uma loucura”. O menino foi crescendo entre os carinhos dos pais. Chamava-se Ezequiel, e, segundo Bentinho, tinha um único defeito: era imitar os outros. Capitu cada vez mais encantava seu marido. Iam sempre ao teatro. Numa noite, porém, Capitu, não se sentindo bem, pediu ao marido que fosse sozinho. Ele foi. Mas não se conteve que não deixasse o espetáculo no fim do primeiro ato, voltando para casa. Encontrou à porta Escobar. Aquilo sem dúvida era muito estranho. Por que viria Escobar tratar de assuntos de circunstância, que poderia tratar durante o dia? Bentinho, contudo, fê-lo entrar. Capitu desfez o mal-estar do marido com muito jeito. Desfez até a preocupação dele em notar a frieza de D. glória para com Ezequiel. Esses primeiros fiapos de desconfiança teriam sua força multiplicada por um acontecimento trágico. Por mais de uma vez Escobar falara a Bentinho sobre seu hábito de nadar. Num desses dias, Escobar não resistiu às ondas, as canoas que o acudiram mal puderam trazer seu cadáver. Esse é o acontecimento central no processo da desconfiança de Bentinho, que se desencadeou quando Capitu “olhou para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas... As minha cessaram logo. Fiquei a ver as dela. Capitu exugou-as logo, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também.” Olhos de ressaca... Bentinho proferiu o discurso funerário, mas rasgou depois o texto, sob protesto de José Dias. Ficou perambulando pelas ruas. Não se animou logo em entrar em casa.
Já vimos que D. Casmurro é um livro que demonstra um certo envolvimento com a temática das semelhanças  e das aparências. Particularmente, com a temática das semelhanças e das aparências. Particularmente, com a temática facial e retratístico. Boa parte deste livro é ocupado por comentários que o narrador vai fazendo sobre seus próprios depoimentos, enfim, sobre o romance que está escrevendo. Trata-se de um processo que recebe o nome de metalinguagem. Mas há no livro também uma preocupação muito fina com aquilo que Aristóteles julgava ser a essência da obra literária, e que é a imitação, a mimese. Senão vejamos. Houve a referencia importante à semelhança entre Capitu e a mãe de Sancha. Outro fato importante ligado à questão da semelhança é que tanto bentinho como Capitu não apreciavam as imitações que Ezequiel fazia. Num certo dia, foi a própria Capitu que veio a lembra a Bentinho o quanto os olhos de Ezequiel se pareciam com os de Escobar. Bentinho, a principio, não deu importância à observação. Mas, com o passar do tempo, foi vendo que a semelhança não estava apenas nos olhos. “As restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-se apurando com o tempo (...) Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do Seminário e do Flamengo, para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me a noite a benção de costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo.”
É curioso como uma mulher pintada com tanta astúcia pudesse cair na temeridade de dizer aquilo ao marido – chamar sua atenção para a semelhança entre o filho e o amigo. Isso pode ser interpretado como inocência ou como humor diabólico. De qualquer forma, a situação do casal foi se deteriorando. E – ao contrário de que se poderia esperar – Ezequiel tinha adoração por Bentinho. Capitu, para não agastar o marido, teve de colocar o filho num colégio interno. Um dia Bentinho chegou, finalmente à idéia do suicídio. Visitou serenamente a família, depois foi ao teatro, onde se representava Otelo, de William Shakespeare. Mais uma vez se nos apresenta aqui a temática da representação, pois o drama que Bentinho nos confessa é muito parecido com o de Otelo e Desdêmona. “o último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as suplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público. – E era  inocente, vinha eu dizendo rua abaixo. “Bentinho, já em sue gabinete, tira o veneno do bolso. O copeiro havia trazido o café. Escreveu ainda uma última carta para sua esposa, com a finalidade de incutir remorso. “acabemos com isto pensei.” “mas Ezequiel entra no gabinete: “-Papai!Papai!”E eis que se levanta um desejo assassino no espírito de Bentinho. “Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havê-lo inteiramente esquecido, mas crê que foi belo e trágico. Efetivamente, a figura do pequeno fez-me recuar até dar com as costas na estante. Ezequiel abraçou-me os joelhos, esticou-se nas pontas dos pés, como querendo subir e dar-me um beijo do costume (...) Se eu não olhasse para Ezequiel, é provável que não estivesse aqui escrevendo este livro, porque o meu primeiro impulso foi correr ao café e bebê-lo. Cheguei a pegar na xícara, mas o pequeno beijava-me a mão, como de costume, e a vista dele, como o gesto, deu-me outro impulso que custa-me dizer aqui; mas vá lá, diga-se tudo. Chamem-me embora assassino; não serei eu que o desdiga ou contradiga; o meu segundo impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomara café (...) Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo, que quase a entornei, mas disposto a faze-la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a temperatura, porque o café estava frio... Mas não sei que senti que me fez recuar. Pus a xícara em cima da mesa e dei por mim a beijar doidamente a cabeça do menino.
- Papai! Papai! Exclamava Ezequiel.
- Não, não, eu não sou teu pai!
Foi quando apareceu Capitu. Ouvira a última frase. Bentinho repete o que dissera. Capitu fala em separação. “A separação é cousa decidida, redargüi pegando-lhe na proposta”. Capitu disse que sabia a razão daquilo, era a casualidade da semelhança... Mas a vontade de Deus explicaria tudo... Ele se ria? Era natural; apesar do Seminário, ele não acreditava em Deus. Ela, Capitu, acreditava. Mas não lhes ficava bem dizer mais nada. Bentinho então rejeita a morte. Aguarda a volta de Capitu, que fora levar Ezequiel à missa. “Aqui esta o que fizemos. Pegamos em nós e fomos para a Europa, não passear, nem ver nada, novo nem velho; paramos na Suíça. Uma professora do Rio Grande, que foi conosco, ficou de companhia a Capitu ensinando a língua materna à e Ezequiel, que aprenderia o resto nas escolas do país. Assim regulada a vida tornei ao Brasil.” Bentinho foi a Europa varia vezes, mas  nunca mais procurou ver Capitu de quem recebia cartas. E assim se foram acabando as coisas nesse romance a que não se pode negar um certo tom de tragédia. Também se foram acabando as pessoas em volta de Bentinho. José Dias jamais foi à Europa. Tio Cosme ficou inválido era tratado por José Dias. D. Glória faleceu. Bentinho mandou escrever em sua sepultura apenas uma expressão: uma santa. José Dias queria que fosse Santíssima. Também este  durou pouco. Bentinho chegou a chamar para ele um homeopata “-Não, Bentinho, disse ele; basta um alopata; em todas as escolas se morre”. Morreu achando lindíssimo o dia em que rendia sua alma a Deus.
Bentinho já estava residindo em sua nova casa, quando foi surpreendido por um cartão de visita, onde estava escrito: Ezequiel A. Santiago. E eis que entra o moço. “Não me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo companheiro do seminário de São José, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo, e, salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo”. Esta parte final do romance também é importante. Não apenas porque ela vai mostrar que Bentinho não só continuou convicto, mas reforça ainda mais suas convicções, mas também porque do lado de Ezequiel, e do lado da mãe, enquanto viveu, não se mostra a mínima disposição em assumir culpabilidades. Porém, mais do que qualquer outra coisa, o amor inconteste que Ezequiel demonstra por Bentinho, o tom sincero com que fala também de sua mãe, recentemente morta, os elogios que esta fazia ao marido, tudo isso dá uma profunda nota de tristeza ao final desse livro. Essa tristeza é talvez fruto de se verificar que, enfim, ninguém foi realmente feliz nesse romance, quando havia todas as possibilidades para isso. Sem dúvida eram pessoas que mereciam pelo menos ter realizado alguns dos sonhos simples, mas grandes, da vida. D Glória, por exemplo, com que dor não deve ter vivido seus últimos dias! Primeiro mandou o filho ao seminário, depois se arrependeu e tudo para pior. Por fim, não podia agüentar a presença do neto, porque certamente ela também estranhava aquela semelhança entre Escobar e Ezequiel.e o simpaticíssimo José Dias, figura tão meiga, tão solícita, apesar de uma certa indisposição inicial contra “a gente do Pádua”? Prima Justina também morreu, sem ver se Ezequiel tinha realmente mais bem vincadas as feições de Escobar. O próprio Ezequiel que visitara o pai, e depois partira para expedições de arqueologia, veio a morrer 11 meses depois, não de lepra, como deixou escorregar Bentinho “e depois se arrependeu”!,mas de febre tifóide.
“Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou aí para um cato como uma flor lívida e solitária. Não lhe dei essa cor ou descor. Vivi o melhhor que pude, sem me faltarem amigas que me consolassem da primeira. Caprichos de pouca dura, é verdade (...) Agora, porque é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é esse propriamente o resto do li9vro. O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente (...) Qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... a terra lhes seja leve! Vamos à história dos subúrbios”

EXERCÍCIOS
1)Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher que eu era homem. Se ainda não o disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor à força de repetição.”
a)      Destaque as passagens metalingüísticas.
b)      Que características do comportamento das duas personagens, quando crianças, permitem entender a afirmação de Bentinho?
c)      Qual a diferença fundamental entre Bentinho narrador, que está escrevendo a história de sua vida, e o Bentinho menino, que se surpreende com o comportamento de Capitu?

2) A propósito do texto abaixo, de Machado de Assis, assinale a alternativa correta.
A imaginação foi companheira de toda minha carreira, viva, rápida, inquieta, algumas vezes tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas, correndo. Creio haver lido em Tácito que as éguas iberas concebiam pelo vento; se não foi nele, foi noutro autor antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste particular, a minha imaginação era uma grande égua ibera; a menos brisa lhe dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre; mas deixemos metáforas atrevidas e impróprias dos meus 15 anos. Digamos o caso simplesmente. A fantasia daquela hora foi confessar a minha mãe os meus amores para lhe dizer que não tinha vocação eclesiástica.

a)      O trecho ironiza o conceito de imaginação, ao associar imaginação e égua, produção criativa e potro.
b)      Por suas características temáticas, é possível identificar o trecho com o realismo, já que trata do anticlericalismo.
c)      A metalinguagem (que pode ser definida como uma reflexão sobre o próprio ato de escrever) evidencia-se em trechos como “deixemos metáforas atrevidas e impróprias dos meus quinze anos” ou “digamos o caso simplesmente”, mas não é procedimento habitual de Machado de Assis
d)     O trecho apresenta foco narrativo em primeira pessoa, quem que um “eu” tudo julga, seja suas próprias emoções, seja a tradição literária clássica.
e)      O trecho relata objetivamente fatos ocorridos ao narrador quando tinha quinze anos; como o centro da narração é o ato de a personagem dizer à mãe que não ira ao seminário, pode identificá-la com facilidade: trata-se de Bentinho, do romance Dom Casmurro.

3) As afirmações abaixo referem-se à obra D. Casmurro. Assinale a incorreta.
a) Quanto ao foco narrativo, o “eu” do narrador se identifica com a personagem central do romance, transformando-se numa espécie de diário íntimo do personagem Bentinho.
b) Bentinho constitui a personagem que primordialmente realiza a função emotiva ou expressiva, pois o foco narrativo vem de Bentinho e dele derivam os sentimentos, as idéias e as sensações com relação às personagens que com ele entram diretamente em contato: Capitu D. Glória, José Dias, Escobar, Ezequiel.
c) Machado, deslocando o foco narrativo para o narrador-protagonista, adota uma atitude que aparentemente retira do autor do romance a responsabilidade pelo que está sendo relatado. Ele como que se isenta da culpa do que ali vai sendo narrado, pois é a personagem Bentinho quem fala diretamente ao leitor.
d) A ação é essencialmente psicológica e limita-se ao processo da conquista realizada por Capitu e à conseqüente queda e destruição interior de Bentinho
e) A ação desenvolve-se em torno das tentativas de uma explicação do adultério cometido por Capitu, e esta dúvida é dirimida ao leitor no final do romance.

4) . Leia com atenção o trecho de Dom Casmurro de Machado de Assis:
            (...) se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: “Não tenhas ciúmes de tua mulher para eu ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti”. Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.
            E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos  ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem  juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve!
a) a imagem que aparece de Capitu neste trecho é que ela desde menina tem uma mentalidade adulta, o mesmo acontece com Bentinho? Justifique.
b) Qual a diferença de personalidade, no que diz respeito à ingenuidade, entre Bentinho criança e Dom Casmurro, narrador da história?

5. “Em Dom Casmurro, o processo de enunciação é constantemente lembrado, estabelecendo um nexo entre a trama romanesca, cuja finalidade é deleitar e comover o leitor, e o processo ideativo, cuja sede está nos comentários livres que se mesclam à trama e a integram, com finalidade docente, expandindo a espessura filosófica do texto e convidando o leitor a meditar sobre a trajetória humana.”
a) Você concorda com essa afirmação? Por quê?
b) Isso é comum a toda a obra de Machado de Assis ou o livro configura uma exceção ao conjunto da obra do autor?

6. No capítulo LXII de Dom Casmurro que se chama “Uma Ponta de Iago” encontramos;
            Estou que e empalideci; pelo menos, senti correr um frio pelo corpo todo. A notícia de que ela vivia alegre, quando eu chorava todas as noites, produziu-me aquele efeito, acompanhado de um bater de coração, tão violento, que ainda agora cuido ouvi-lo. Há alguma exageração nisto; mas o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, ajustando-se. Por outro lado, se entendermos que a audiência aqui é das orelhas, senão da memória, chegaremos à exata verdade.
a)      Segundo Shakespeare, na peça Otelo, quem foi Iago? Comente o jogo de palavras que Machado de Assis faz com o nome do narrador da história.
b)      No trecho “notícia de que ela vivia alegre”, quem é “ela?

7.Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher que eu era homem. Se ainda não o disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor à força de repetição.”
a) Destaque as passagens metalingüísticas.
b) Que características do comportamento das duas personagens, quando crianças, permitem entender a afirmação de Bentinho?
c) Qual a diferença fundamental entre Bentinho narrador, que está escrevendo a história de sua vida, e o Bentinho menino, que se surpreende com o comportamento de Capitu?

8. A propósito do texto abaixo, de Machado de Assis, responda corretamente as questões:
A imaginação foi companheira de toda minha carreira, viva, rápida, inquieta, algumas vezes tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas, correndo. Creio haver lido em Tácito que as éguas iberas concebiam pelo vento; se não foi nele, foi noutro autor antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste particular, a minha imaginação era uma grande égua ibera; a menos brisa lhe dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre; mas deixemos metáforas atrevidas e impróprias dos meus 15 anos. Digamos o caso simplesmente. A fantasia daquela hora foi confessar a minha mãe os meus amores para lhe dizer que não tinha vocação eclesiástica.
a) “Quando o autor comenta a respeito da própria imaginação, dá uma dica importante sobre a avaliação criteriosa que o leitor deve fazer do romance para definir o que é de fato verdade ou não”.
Você concorda com a afirmativa? Cite um momento da história que justifique sua resposta.
b) A mãe de Bento aceitará suas desculpas neste momento da narrativa? Por que ela acha que Bento deve seguir carreira eclesiástica?

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