segunda-feira, 4 de outubro de 2010

FUVEST/UNICAMP 2010 – AULA DE LIVRO

FUVEST/UNICAMP 2010 – AULA DE LIVRO

AUTO DA BARCA DO INFERNO
(Gil Vicente)

Dados Biográficos:
Seria lícito perguntar: por que se comemorou em 1965 o centenário do dramaturgo português do século XVI? Teria o poeta e criador do teatro português nascido precisamente no ano de 1945? À falta de documentação a respeito, costumam os biográficos recorrer às próprias informações do autor ao longo de suas peças, expediente nem sempre seguro e às vezes até com resultados contraditórios. Se nos utilizarmos de passagens de sua obra para determinação da data de seu nascimento chegaríamos a três hipóteses: à de que nasceu em 1452 consoante no que ocorre na farsa do Velho da horta (1512), em que o Velho, cujo papel era desempenhado naturalmente por Gil Vicente, aparece com idade de 60 anos; à de que nasceu em 1470, se dermos crédito à idade do Doutor Justiça Maior, na Floresta de enganos (1536) (papel também representado pelo autor), que ali aparece com 66 primaveras; e à de que nasceu entre 1454 e 1456, conforme uma passagem do Auto da festa (1515), em que uma velha, aconselhada a casar-se, recusa-se e argumenta que havia sido muitas vezes solicitada em casamento por Gil Vicente, pretendente “mui barregudo” e que já passava dos 60. Duas datas porém entram em concorrência, lideradas pelos dois mais abalizados biógrafos do Poeta: a de 1470, proposta por Brito Rebelo, e a de 1460 por Anselmo Braamcamp Freire. Queirós Veloso, em 1930, propôs a data de 1465, média aritmética das duas datas em litígio, argumentando ser esta data a que mais se conforma com o decorrer da vida de Gil Vicente. À falta, portanto, de documentos decisórios, fixou-se o ano de 1465 para nascimento do poeta. É uma data puramente convencional, como é a de 25 de dezembro para comemorar o natalício de Cristo. Se 25 de dezembro é uma data puramente eclesiástica (pois podia ser perfeitamente o dia 6 de janeiro ou o dia 28 de março – datas também baseadas em documentos antigos), 1465 é uma data literária, bem como a de 1537 para assinalar o ano em que Gil Vicente faleceu. O certo é que as grandes personalidades literárias, como que a superarem as próprias balizas de seu tempo, não apresentam limites biográficos definidos.
            O que sucedeu com Shakespeare, sucede com Camões e Gil Vicente: não sabemos ao certo quando nasceu o dramaturgo, como ignoramos também a cidade que lhe serviu de berço: Guimarães? Barcelos? Lisboa? Em alguma freguesia do Norte ou da Beira? (Gil Vicente revela um conhecimento minucioso dos costumes e do linguajar dessa região; e quase todos os seus pastores são da Serra da Estrela). O que sucede com a sua biografia, sucede com muitas de suas peças, cujas datas de representação permanecem ainda no obscuridade ou na dúvida: o Auto da festa, em que ano teria sido representado – 1515, 1516, 1528? O Autos dos físicos teria sido no ano de 1512, no ano de 1516, ou, bem mais tarde, em 1524? O Auto dos quatro tempos teria sido representado em 1511 ou também em 1516? E o Auto da ciganas? E o auto da Sibila Cassandra? São conjecturas que haverão de permanecer como pontos de interrogação na trajetória cronológica da dramaturgia vicentina. Sabemos, também, que Gil Vicente veio a falecer antes que realizasse a compilação de sua obra, e por isso conhecemo-la apenas pelo trabalho do filho, Luís Vicente< que ordenou as peças, retocou-as e publicou em 1562 com o título de Compilaçam de todalas as obras de Gil Vicente, um quarto de século depois da morte do pai. Entretanto nem todas as peças escritas por Gil Vicente figuram na  Compilaçam: o Auto da aderência do paço, o Auto da vida do paço e o Jubileu de amores, publicados provavelmente em vida do autor, foram proibidos pela Inquisição e encontram-se desaparecidos; anteriores à Copilaçam, Gil Vicente fizera correr em folhas volantes várias de suas peças: o Auto da peça, publicado em 1906 pelo Visconde de Sabugosa em fac-símile; a Barca do inferno, a Farsa de Inês Pereira, o Duardos e o Pranto de Maria Parda. Mais recentemente I. S. Révah publicou, como da autoria de Gil Vicente, duas outras peças, que também não figuram na Copilaçam: o Auto de Deus Padre, Justiça e Misericórdia e Obra da geração humana, peças estas de autenticidade duvidosa.
            O certo é que quando Gil Vicente imaginou fazer teatro no seu tempo, deve Ter-se sentido desolado diante da escassez de tradição teatral em sua terra. Portugal não desconheceu totalmente uma atividade teatral na Idade Média, mas tratava-se de teatro religioso, um teatro inorgânico, desprovidos de elementos literários e hoje não documentado. Em fins do século XV, no reinado de D. João II, entretanto, as comemorações palacianas aparecem festejadas com representações de momo e entremeses, um teatro puramente cenográfico, em que o aparato alegórico dominava a representação, e a riqueza cenográfica subia para primeiro plano. Esse teatro aparece documentado nos cronistas do século XVI – Rui de Pina e Garcia de Resende. Em dezembro de 1501, portanto seis meses antes da primeira peça representada por Gil Vicente, o casamento de D. Manuel com a Infanta D. Maria de Castela era festejado com um desses espetáculos de momos. Para se Ter uma idéia da revolução literária operada pelo teatro de Gil Vicente, leiamos uma pequena passagem da Crônica de D. João III, em que Garcia de Resende nos descreve aquela representação, classificada de “entremês” pelo próprio cronista:
            “Entrou [El-Rei] pelas portas da sala com nove batéis grandes, em cada um seu mantenedor, e os batéis metidos em ondas do mar feitas de pano de linho e pintadas de maneira que parecia água; com grande estrondo de artilharia de tirava, e trombetas, atabales e menestris altos que tangiam, e com muitas gritas e alvoroços de muitos apitos de mestres, contra-mestres e marinheiros, vestidos de brocados e sedas com trajos de alemães, e os batéis cheios de tochas, e muitas velas douradas e acesas com toldos de brocado, e muitas e ricas bandeiras.
            A assi vinha uma nau à vela, cousa espantosa, com muitos homens dentro, e muitas bombardas, sem ninguém ver o artifício como andava, que era cousa maravilhosa. O toldo e toldos das gáveas de brocado, e as velas de tafetá branco e roxo, a cordoada de ouro e seda, e as âncoras douradas...
            E acabado, os batéis botaram pranchas fora, e saiu El-Rei com seus riquíssimos momos, e a nau e batéis que enchiam toda a sala se saíram com grande grito e estrondo de artilharia, trombetas e atabales, charamelas e sacabuxas, que parecia que a sala tremia e queria cair em terra.
            El-Rei dançou com a Princesa, e os seus mantenedores com damas que tomaram; e logo veio o Duque com fidalgos de sua casa com outros riquíssimos momos. E veio outro entremês...”
            O próprio Garcia de Resende, que todos conhecemos como compilador da poesia tradicional que resultou no grande Cancioneiro Geral, ao fim da vida, já sexagenário, resolveu registrar poeticamente um rosário de fatos e curiosidades que mereciam “poer em remembrança”, uma espécie de jornal poético do tempo em forma de memórias. Pois bem: o teatro vicentino o havia impressionado muito desde as primeiras representações; a aparição de Gil Vicente foi então registrado assim na sua obrazinha intitulada Miscelânea, em que cada estrofe é o registro de uma curiosidade:

                                               E vimos singularmente
                                               fazer representações
                                               de estilo mui eloqüente,
                                               de mui novas invenções,
                                               e feitas por Gil Vicente
                                               ele foi o que inventou
isto cá, e o usou
com mais graça e mais doutrina,
posto que Juan del Encina
o pastoril começou.

            Esta aqui nesta estrofe o testemunho mais extraordinário de um contemporâneo de Gil Vicente. Um testemunho breve mas completo; nele Garcia de Resende assinala: o deslumbramento que o tetro de Gil Vicente suscitara no seu tempo; as invenções introduzidas por Gil Vicente, uma novidade sem precedentes; a atribuição da paternidade vicentina desta revolução no campo do teatro; o fato de Gil Vicente haver-se inspirado no teatro pastoril castelhano de Juan del Encina; e – o que é mais importante (pois Garcia de Resende demonstra conhecer o teatro espanhol) – o fato de Gil Vicente haver superado o modelo castelhano, com um teatro em que a graça e a doutrina eram notas absolutamente originais.
            Mas em que sentido o teatro de Gil Vicente se tornou um teatro original na Península? Se é certo que a tradição não lhe oferecia um ponto de partida para a sua arte; se é certo que foi à Espanha buscar nas representações pastoris de Juan del Encina e de Lucas Fernandes as sugestões para o seu teatro, muito cedo Gil Vicente demonstrou a sua capacidade criadora, abandonando em poucos anos esse teatro eglógico de pastores e restabelecendo o predomínio da palavra, o predomínio do texto literário sobre o espetáculo, sobre a riqueza cenográfica.
            Quando Nicolau Clenardo, o grande humanista flamengo, viajou por terras peninsulares e acabou residindo em Portugal em fins de 1533 – como preceptor do Infante D. Henrique o Cardeal - , nos seus anos de permanência em Portugal veio naturalmente a conhecer o teatro de Gil Vicente e a pessoa do Poeta, que tinha convivência e prestigio na corte de D. João III. André de Resende, o ilustrado humanista português ( em cuja obra Camões encontrou a palavra que serviu de título para o seu poema épico), já havia proclamado ao mundo o valor da arte vicentina no seu Genethliacum pelo nascimento do rei D. Manuel, e por certo tê-lo-ia apresentado a Clenardo, seu amigo, trazido a Portugal pelo próprio André de Resende. E então perguntamos: por que razão Clenardo, que veio a conhecer o Poeta, que veio com certeza a assistir às suas representações já no fim de sua carreira, não faz a mais ligeira menção ao nome de Gil Vicente e ao seu teatro, nas suas 64 cartas em latim, que constituem um documento valioso para a história da cultura Portuguesa do Renascimento? Clenardo, que sempre foi tão afetuoso com  os seus amigos e deles sempre se lembra com carinho em sua epistolas, por que permaneceu em silêncio em relação a Gil Vicente, se ambos se conheciam, se ambos freqüentavam a mesma corte? O Cardeal Cerejeira, na obra que consagrou a Nicolau Clenardo, supõe encontrar-se a chave do mistério numa “diferença de mentalidades” Nem há dúvida: Gil Vicente era um espírito altamente representativo do homem medieval; se chegou a perceber o grande fenômeno do Renascimento – desta Renascença que emancipava o homem dos liames a que estava vinculado na Idade Média e o atirava para além da balizas do mediterrâneo com os descobrimentos ultramarinos -, Gil Vicente manteve todavia um homem preso a uma concepção teocêntrica da vida, fiel aos padrões do homem que viveu num crepúsculo da Idade Média. Ainda que respirasse as auras do Renascimento, cujo revolução intelectual e social consistiu numa nova concepção da vida baseada nos ideais da cultura clássica, na desintegração da economia feudal e no desenvolvimento do capitalismo comercial, Gil Vicente mantinha-se integrado num saber de tradição medieval. Saudoso sempre daquela estrutura feudal que garantia ao homem certa estabilidade, abalada agora pela dinâmica da expansão ultramarina. Antes que o Concílio de Trento, realizado pouco depois de sua morte (1545-1563), viesse tentar uma reposição do Homem nos quadros culturais da Idade Média, já o bom do Gil Vicente procurava lembrar ao homem que possuía uma alma para salvar: se em 1517, com o representação do Auto da embarcação o Inferno, mostrou cruamente a crise moral em que estavam metidas todas as classes sociais de seu tempo – desde o sapateiro ao fidalgo, desde o clérigo aos homens do foro -, em 1518 propôs-lhes com Auto da alma o caminho para a salvação. Gil Vicente é, portanto, uma antecipação das vozes que se proclamaram nesse Concílio, cujas resoluções finais visaram destemperadamente a uma renovação interna da Igreja e à salvação das almas.
            Outro problema biográfico que tem feito correr tinta aos seus biógrafos e críticos, é o da identidade do Gil Vicente dramaturgo e Gil Vicente ouvires. Desde fins do século passado se travou encarniçada polêmica a volta desta identificação, em que figuraram como principais litigantes Teófilo Braga e Anselmo Braamcamp Freire. Desta polêmica resultou posteriormente a publicação do monumental trabalho de Braamcamp Freire intitulado Gil Vicente trovador e mestre da Balança. Por que razão este título? Simplesmente porque entre outros documentos que falavam num Gil Vicente ouvires, um dia o general Brito Rebelo – respeitável gilvicentita – encontrara nos livras de chancelaria de D. Manuel uma carta datada de 4 de fevereiro de 1513, constante do livro 42º., na qual figurava a nomeação de Gil Vicente para mestre interino da balança da Casa da Moeda de Lisboa; e junto deste documento aparecia, encimando o registro da carta régia, o seguinte sumário escrito por mão autorizada: Gil Vicente Trovador Mestre da Balança. A anotação, feita num documento régio, só poderia Ter partido de pessoa idônea e com qualificação para isso. É possível que outros documentos ainda surjam para comprovar a identidade, pois como se sabe, dos 71 livros primitivos de chancelaria manuelina, hoje só nos restam 45, e a desarrumação em que se encontram esses livros na Torre do Tombo impede qualquer trabalho de investigação.
            O certo é que, se à vista desse documento e da prodigiosa obra de Braamcamp Freire ficou admitido que Gil Vicente o ouvires e Gil Vicente o dramaturgo são a mesma pessoa, hoje ainda vozes se levantam para discordar. Antônio José Saraiva, por exemplo, é de opinião que o problema continua em suspenso, pois não considera decisivos os documentos apresentados. Na qualidade de ouvires Gil Vicente como autor ou lavrante da célebre Custódia de Belém, um ostiário deslumbrante, obra-prima da ourivesaria universal, e que se encontra hoje no Museu de arte Antiga, na rua das Janelas Verdes em Lisboa. Vale a pena lembrar que Gil Vicente deixou, em algumas passagens de suas peças, o gosto da arte de lavrar. Recordem-se, por exemplo, aqueles versos do Auto da Alma, quando o Diabo, na tentação da Alma, lança mão de seus “últimos cartuchos” – os quais julgava definitivamente convincentes para seduzi-la. Diz ele:
                                               O ouro para que é?
                                               E as pedras preciosas
                                               E brocados?
                                               ...............................................
                                               Vedes aqui um colar
                                               de ouro, mui esmaltado,
                                               e dez anéis;
                                               agora estais vós para casar
                                               e namorar.
                                               ................................................
                                               E poreis estes pendentes,
                                               em orelha seu:
                                               isso si.
           
Estava, pois, convencido o Diabo de que a Alma não resistiria à tentação das pedras preciosas, dos brincos, dos anéis e dos colares de ouro lavrados.
Ou então aquela deliciosa passagem do Velho da horta, em que o sessentão apaixonado diz à jovem freguesa:

                                   Colhei, rosa dessas rosas!
                                   Minhas flores, colhei flores!
                                   Quisera que esses amores
                                   foram perlas preciosas,
                                   e de rubis
                                   o caminho por onde is,
                                   e a horta de ouro tal,
                                   com lavores mui sutis,
                                   pois que Deus fazer-vos quis
                                   angelical.

Na trigicomédia intitulada Cortes de Júpiter, representada por ocasião da partida da Infanta D. Beatriz para Sabóia (aonde foi desposar o Duque), Gil Vicente figura a Infanta acompanhada por um cortejo; e aí o príncipe D. João irá;

                                   em um andor
                                   do ouro que melhor for
                                   ......................................
                                   e um sobrecéu por cima
                                   d´esmeraldas e rubis
                                   lavrado d´obra de lima,
                                   que não possam dar estima
                                   a lavores tão sutis.

E aí temos o estado em que se encontra o problema da identificação dos dois artistas.
Outro aspecto de relevante importância na carreira dramática de Gil Vicente é o prestígio de que gozou nas cortes de D. João II, D. Manuel e D. João III, prestígio que só se explica se pensarmos que o dramaturgo desfrutava nestas cortes da amizade e proteção de alguma pessoa muitíssimo influente. Sem dúvida: a pessoa que viveu durante esses três reinados foi a rainha D. Leonor, chamada Rainha Velha, viúva de D. João II irmã de D. Manuel. Era ela que se encontrava na câmara da Rainha Nova – mulher de D. Manuel, na noite de 7 de junho de 1502, um dia após o nascimento do futuro D. João III, quando Gil Vicente irrompeu atropeladamente pela câmara a dentro com seus pastores figurantes e recitou o Monólogo do vaqueiro, sua primeira peça. Deslumbrada com a novidade, foi a rainha D. Leonor que recomendou ao Poeta repetir a representação nas matinas do Natal, endereçando-se ao nascimento do Redentor. Foi para ela que V escreveu a maior parte de seus autos, e por sua ordem que lavrou dois cálices que foram legados pela Rainha ao Mosteiro da Madre de Deus.
Todos sabemos que D. Leonor deixou seu nome dignamente registrado na história portuguesa: fora ela que criara as Misericórdias no reino; fora ela que criara o esplêndido Convento da Madre de Deus em Xabregas; ela que protegera a imprensa e fundara o Teatro Nacional; é o seu nome que aparece vinculado à edição monumental da Vita Christis e outras publicações preciosas. Mas, além desta afinidade entre Gil Vicente e a rainha D. Leonor na obra de recuperação dos costumes nacionais, atualmente já se pensa também numa afinidade de ordem religiosa, ligados como estavam ambos a uma heterodoxia que vinha do século XII, quando Joaquim de Fiore apareceu com a sua heresia em que pregava a futura substituição da Igreja de Cristo pela Igreja do Espírito Santo. Como se sabe, dessa doutrina dos Espirituais se tornou simpatizante uma boa ala da ordem franciscana; e é curioso que em 1515, quando se publica a obra mística intitulada Boosco deleytoso, vem ela oferecida à rainha D. Leonor, pertencente à Ordem Terceira de S. Francisco. Ora, “esta obra prega uma forma extremamente radical de vida religiosa, que consistia num total desprendimento  do mundo e da vida como caminho para o contato direto com Deus ainda durante a existência terrena” – diz Antônio José Saraiva nas suas inteligentes indagações acerca do pensamento religioso do Poeta, entroncado nem pré-reformismo peninsular de ascendência luliana. A tal movimento, de origem na doutrina dos Espirituais e na metafísica mística de Raimundo Lúdio, não esteve alheio Gil Vicente; e dele saíram inúmeros adeptos de Erasmo. Daí as razões de se pensar num Gil Vicente erasnistas. Teófilo Braga chegou a apresentar o nosso autor como um herege, corifeu da reforma protestante e até um precursor de Lutero, tese que andou muito em voga até princípios deste século. O erasmismo de Gil Vicente é propriamente um fenômeno fortuito: mera coincidência de posição, pois não estamos em condições de afirmar que o dramaturgo conhecesse diretamente as obras do humanista neerlandês. Os dois encontravam no mesmo movimento pré-reformista de princípios do século XVI: combatiam a indisciplina do clero, criticavam os jubileus, as bulas, as estações e as indulgências; condenavam a prática da oração para fins utilitários. Os iluminados (“alumbrados”) do fim da Idade Média, pregavam uma oração toda espiritual, idêntica à que Gil Vicente recomendava no Auto da Cananea, quando introduz Cristo a dizer:

                                    que o rezar não é ouvido
                                   nem é nada
                                   sem alma estar inflamada
                                   e o espírito transcendido
                                   na divindade sagrada.
                                   Nem cuideis que arrecadais
                                   por rezar muita oração
                                   se no coração estais
                                   fora de contemplação.

Outro  ponto de contacto com a doutrina erasmista é a escassíssima simpatia que sempre demonstrou Gil Vicente pelo culto dos santos. Só uma vez encenou uma vida de santo, e no início de sua carreira, ainda assim a pedido de sua protetora: no Auto de S. Martinho.
Dois outros aspectos da biografia do dramaturgo julgamos merecer algumas considerações: Gil Vicente praticamente não fez teatro, durante 6 anos, entre 1503 e 1509; e a interrupção de sua carreira dramática em 1536 coincidiu com a instituição do Santo Ofício em Portugal. Por que teria o Poeta silenciado a sua inspiração durante a primeira fase de seu teatro, e interrompido a sua arte no ano da implantação do Santo Ofício?
Entre os anos de 1503, em que escreveu e representa o Auto dos Reis Magos (pois o Auto de S. Martinho, de 1504, é apenas um dialogo poético de 80 versos) e o Auto da Índia representado em 1509, Gil Vicente quase nada escreve, a não ser um sermão em versos pregado em Abrantes perante o rei D. Manuel o ouro que Vasco da Gama trouxera de sua segunda viagem à Índia, como tributo de vassalagem do rei de Quiloa. Com ele devia Gil Vicente lavrar a custódia que o Rei destinaria depois ao mosteiro de Belém; nela trabalhou durante três anos, entre 1503 e 1506. Em 1504 e 1506 morreram sucessivamente a rainha Isabel de Espanha e D. Beatriz, mãe de D. Manuel; a corte entra em luto. Entre os anos de 1506 e 1507 Lisboa foi flagelada pela fome e pela peste; na Páscoa do ano anterior ocorrera em Lisboa o cruel morticínio dos judeus, que suscitou sobre a cidade um interdito, só levantado dois anos depois, em 1508.
Em 1536, ano em que Gil Vicente representa a sua última peça em Évora, intitulada Floresta de enganos, instala-se oficialmente a Inquisição em Portugal por ordem de D. João III. Alguns autores pretenderam explicar a interrupção de seu teatro por esse fato. Nada mais improcedente. Se a Inquisição fora estabelecida no ano de 1536, era de esperar que seus ministros reprimissem a irreverência anticlerical do teatro vicentino. Mas, instituída em 1536, somente a partir de 1540começam a entrar em Portugal os primeiros padres da Companhia de Jesus; e somente em 1547 sai o 1º Índice de Livros Defesos e nele ainda não se inclui nenhuma peça vicentina. Só na 2ª edição do Index, de 1551, é que surgem sete peças do Autor interditadas pela Censura Inquisitorial, três das quais se perderam: o Auto da aderência do paço, o Auto da vida do paço e o Jubileu de amores representado em Bruxelas em 1531; ainda na 3ª edição de 1561, a Inquisição mantém as sete peças proibidas. Em 1562 quando o filho de Gil Vicente publica a Compilaçam de todalas os obras, as peças anteriormente proibidas saem novamente publicadas. Não há, pois, a mínima relação entre o estabelecimento da Inquisição em Portugal e o término da dramaturgia vicentina. A Compilaçam de 1562, que era inicialmente oferecida a D. João III pelo Autor, foi também dedicada pelo filho – seu compilador – ao príncipe D. Sebastião. E os inquisidores sabiam da afeição que este príncipe votava pela peças satíricas do dramaturgo. Talvez esteja aí a razão por que se incluíram de novo aquelas peças proibidas ( o Auto da Lusitânia, o D. Duardos e o Auto de Pedreanes (que é o mesmo Clérigo da Beira) e o Auto dos físicos).
Em 1536, a crer-se na sua data de nascimento (1465), estava Gil Vicente com 71 anos, portanto numa idade que o aconselhava a recopilar e rever as suas produções – como ele mesmo confessa numa carta dirigida em 1531 a D. João III a propósito de um sermão que pregara no claustro de São Francisco em Santarém.

Aspectos de sua arte
            Como a de Camões, a obra de Gil Vicente já foi pretexto para estudos de toda natureza: Carolina Michaelis analisou-lhe profusa e profundamente a cultura como latinista, como humanista, como poliglota; Anselmo Braamcamp Freire legou-nos a mais ampla biografia do dramaturgo numa obra que é monumental; ainda há pouco, na França, Paul Teyssier publica um respeitável trabalho sobre a língua de Gil Vicente, das mais extraordinárias contribuições dos últimos tempos para a cultura vicentina. Tudo parece ter sido percorrido pelos críticos, pelos ensaístas e pelos historiadores: a religião de Gil Vicente, o elemento lírico no seu teatro; o elemento náutico, as mulheres que povoam suas peças, a sua obra de um ponto de vista etnográfico, as influências teatrais estrangeiras na sua dramaturgia, a sua versificação, o judeu no seu teatro, os homens do foro, os médicos e as alcoviteiras; inclusive o artista como psiquiatra (...). Um aspecto, entretanto, de sua dramaturgia não mereceu ainda o necessário estudo dos especialistas; os fundamentos estéticos do seu teatro. Em 1951, no seu excelente artigo a propósito do cômico, Gino Savioti lamenta-se de que não existia ainda “um livro, um rápido ensaio, que examine a obra do fundador do teatro português pelo lado propriamente teatral”.
            Ainda que Gil Vicente tivesse vivido na alvorada do renascimento português, contemporâneo de Castiglione, Erasmo e Maquiavel, não foi um humanista, nem um espírito representativo das influências italianizantes e clássicas: permaneceu um homem do outono da Idade Média, de cultura escolar e teológica, divorciado do saber científico, oferecendo uma concepção teocêntrica do mundo, um ideal social hierárquico e uma ética fortemente baseada na ascese: desnudar o homem, mostrar-lhe as misérias e apontar o caminho para redenção. É assim que o pranteado Joaquim de Carvalho desenha o espírito do fundador do teatro português, em traços magistrais e definitivos. Ainda que freqüentasse a corte, tendo ensejo de conviver com espíritos que formavam a aristocracia intelectual da época, Gil Vicente permaneceu um homem do povo, de profundas raízes nas tradições folclóricas e poéticas de sua terra, cujo mundo procurou levar para o tablado sem o processo clássico das seleções dos temas. Gil Vicente foi um poeta e um dramaturgo de linha popular. Tanto na escolha dos temas como nos processos teatrais e nas formas versificatórias, manteve-se fiel à sua vocação popular. Dotado de extraordinária intuição artística e de uma capacidade invulgar de observação do homem, das coisas e da natureza, criou um teatro cuja universalidade está hoje definitivamente garantida.
            O seu teatro, pois, - derive ele das églogas, das pastorelas narrativas, dos milagres e mistérios medievais, das farsas e dos entremeses do fim da Idade Média, associando os processos alegóricos à expressão direta, o cômico com o religioso, a crítica social com o mistério –, o seu teatro jamais pode ser entendido se analisado e concebido segundo os padrões de uma estética do teatro popular. As normas vigentes do teatro clássico são no seu teatro inteiramente inaplicáveis. Quando vamos assistir a uma representação do teatro clássico, em que o autor nos atira em meio dos acontecimentos de que a peça constitui apenas o desfecho das 24 horas, precisamos estar munidos de um conhecimento prévio dos fatos que envolvem as personagens e o argumento da peça, sob pena de não entendermos a representação. Nenhuma peça de Gil Vicente exige estas informações prévias para a sua intelecção. O desenvolvimento do tema é sempre linear. Quando as cortinas se erguem – no caso da dramaturgia clássica – o assunto da peça está prestes do desfecho: - festinat ad eventum (caminha para o fim), aconselha Horácio na sua Arte Poética; devia o autor conciliar o tempo histórico com o tempo dramático segundo as leis da verossimilhança – princípio fundamental da arte clássica. Esta lei está inteiramente ausente no teatro vicentino. Gil Vicente não só narra uma vida em quase toda sua extensão histórica – como é o caso da Farsa de Inês Pereira, em que Inês aparece solteira, casada depois com o escudeiro, viúva, e novamente casada com um seu antigo namorado –, como muitas vezes abstrai das circunstâncias cronológicas da peça: no Auto da Índia, o marido engando, que viaja para a Índia, regressa depois de três anos, e com a sua chegada precipitam-se os acontecimentos. No Velho da horta o desrespeito ao tempo ultrapassa as raias do inverossímil: a rubrica da peça diz que um velho hortelão, andando pela manhã em sua horta espairecendo, recebe uma jovem freguesa, de quem acaba por enamorar-se perdidamente. Ora, o diálogo que se trava entre o Velho e a moça não podia durar nove ou dez horas (como faz supor a peça), pois o criado do Velho, quando chega à horta para saber das razões da demora do Velho para o jantar, diz:

                                               Dono, dizia minha dona
                                               Quê fazeis cá te a noite?

Depois disso decorrem as longas peripécias de uma alcoviteira, que procura iludir o Velho com promessas de conquista da Moça; às tantas a alcoviteira é surpreendida pelos beleguins de el-rei que a levem presa e é posteriormente açoitada em praça pública; logo a seguir surge na horta nova freguesa para comprar cheiros, através da qual o Velho vem a saber do casamento daquela que reascendera no coração o ardor da juventude, porque passava pelas imediações um feliz cortejo de jovens. Este casamento só poderia ter-se realizado, - considerando-se a seqüência dos fatos e as proporções do tempo –, às duas ou três horas da manhã.
            No teatro vicentino a colaboração do público consistia portanto numa dupla indulgência: abstrair do fator tempo e imaginar o aparato cenográfico. A cenotécnica vicentina era muito pobre embora não tenhamos hoje elementos para reconstituí-la. Representados os seus autos nos passos reais da ribeira o mais das vezes, em que a família real se postava sobre um estrado no extremo o posto da representação e os demais espectadores formavam no semicírculo, o palco vicentino situava-se no mesmo plano, e o cenários reduziam-se ao simulacro ou à mera indicação de uma porta, uma janela ou pouco mais. Apenas a indumentária e a expressão lingüística poderiam oferecer uma caracterização das personagens. O que o seu teatro perdia em cenografia, ganhava por outro lado literariamente, pois subia para primeiro plano a palavra no dialogo ou no recheio poético da peça. Esta, aliás havia sido a grande inovação trazida por Gil Vicente, ao deixarmos aquele teatro alegórico de pura movimentação cenográfica que figurou nos entremeses reais do fim da Idade Média. Se o teatro grego conferia à palavra um predomínio sobre a movimentação mímica, o teatro medieval, com sua intensa vida de culto religioso, restabeleceu o predomínio da mímica sobre a palavra; e a Renascença, que põe em vigência os padrões de arte clássica restaura novamente o predomínio do elemento verbal ou da declamação como base do teatro, que passou a concentrar-se na vida interior das personagens. O teatro popular de Gil Vicente antecipou-se ao teatro do Renascimento, atribuindo desde o seu aparecimento uma força extraordinária à palavra e à caracterização de seus tipos a ponto de a parte cenotécnica ficar relegada a um plano secundário. O teatro imediatamente anterior ao vicentino consistia, como vimos em representações mômicas e espectaculares, em que a expressão literária praticamente não existia – teatro esse que poderíamos denominar de barroco, ou de gótico chamejante, um teatro altamente representativo daquele visualismo e conseqüente crise da inteligência que caracterizou o outono da Idade Média – e a que se refere Huizinga no seu  livro magistral. Se o barroco plástico se manifesta na exuberância decorativa e no horror ao espaço vazio, consequentemente no repouso da inteligência e no frenético dinamismo dos olhos, o teatro régio das vésperas do Renascimento podia perfeitamente receber a designação de barroco. Até certo ponto é o que sucede nas crônicas de Fernão Lopes , onde esse visualismo se revela na predileção que tinha o Cronista para o espetáculo, para a pintura das festas, dos alvoroços da arraia miúda, dos quadros sombrios, das batalhas, dos torneios, dos vestuários, da riquíssima indumentária dos cavaleiros etc. as descrições das cenas no Cronista são sempre cinemáticas; Fernão Lopes vê tudo em movimento, seus quadros, perfeitamente encenáveis, estão sempre vibrando de dramaticidade. Este banquete dos olhos, que vem até certo ponto compensar o depauperamento da inteligência, explica-se pelos progressos da pintura no século XV, pelo gosto da cor, pela riqueza dos vestuários e das festas palacianas.
            A aparição do teatro vicentino veio quebrar a estética dos olhos e do ouvido, para impor uma estética da reflexão. O homem passou a ser o tema fundamental da dramaturgia vicentina. Não o homem em si, vivendo os seus problemas transcendentes e num plano universal – fundamento temático da dramaturgia clássica –, mas os homens do seu tempo e em todas as suas condições, desde o camponês ao papa, desde o cigano ao judeu, desde o sapateiro ao príncipe, desde o médico e o clérigo ao corregedor e ao fidalgo, desde a alcoviteira à mulher predestinada à maternidade divina. De cada qual Gil Vicente fixa um retrato, pondo em relevo a degradação dos costumes, o anacronismo de certos tipos, a legião dos descontentes, as crendices, as superstições, o esnobismo, a bazófia nobiliárquica, a obsessão da astrologia, a ignorância dos físicos e dos curandeiros. É a crítica dos labregos sem instrução, do abandono do campo e do trabalho a troco da aventura do mar, das religiosas que protestam contra a rigidez das regras conventuais, das donzelas que se rebelam contra os afazeres domésticos, dos que ambicionam entrar para o serviço de el-rei e dos que se gabam de privança com ele, dos fidalgos decadentes e dos clérigos amancebados, dos médicos incompetentes e dos juizes desonestos, enfim, é a crítica da sociedade contemporânea, uma sociedade abalada nas suas tradições. O teatro de Gil Vicente é uma fotografia perfeita desse momento critico em que o homem deixa a Idade Média e ingressa impunemente no Renascimento. E Gil Vicente, ainda que fizesse da sátira um pretexto para deliciar suas platéias, inicia uma cruzada de recuperação do homem; o objetivo do seu teatro era atingir a consciência do homem, não exclusivamente atender as exigências lúdicas de um auditório acostumado a deleitar os olhos. Essa a grande inovação estética operada pela arte vicentina. Mas, como teatro de feição popular, como teatro que pudesse alcançar todos os degraus da escada social, Gil Vicente intuiu a inevitabilidade dos padrões estéticos de inspiração popular. A desordem que impede uma classificação nítida de suas produções dramáticas, a inobservância da construção dramática trinitária, a fixação do cotidiano como substância temática de sua inspiração, o apelo aos recursos sugestivos da poesia popular, a participação do auditório no desenrolar da representação, a mistura intencional do cômico ao sério, a indivisibilidade cênica de suas peças –m, enfim tudo aquilo que o teatro clássico desconhecia –, faziam o encanto e marcavam a originalidade da arte teatral de Gil Vicente.
            Os teóricos da estética clássica fixaram os princípios e as receitas para a captação da Beleza Absoluta, do belo universal; desconhecendo ou renegando estas normas e apelando para os recursos naturais de uma arte baseada na própria ilogicidade da vida e do mundo, Gil Vicente atingiu o mesmo fim. Ninguém poderá pôr em duvida a universalidade do seu teatro; ninguém poderá negar que ele tem e terá sempre o público garantido. Quando Sá de Miranda regressou da Itália a Portugal em fins de 1526, trazendo de lá as novidades literárias do classicismo italiano e o propósito de introduzir em sua terra o teatro de estrutura clássica, a representação de sua comédia intitulada Os estrangeiros em 1527, bem como a encenação do seu idílio A fábula do Mondego talvez no mesmo ano, em nada abalaram o prestígio da arte vicentina, que continuou a sua trajetória serena e aplaudida por mais oito ou nove anos, até a representação de Floresta de enganos, em 1536, a última de suas criações.
            O teatro do Renascimento –diz Gino Savioti – começou por abandonar os pequenos quadros sucessivos, os episódios que precipitam sem a observância da categoria tempo e espaço, condensando sobre tudo a substância cênica em três ou cinco atos solidamente estruturados. Gil Vicente não ignorava as tendências do teatro no seu tempo, e, irredutível a estas inovações posta em voga pela arte dramática do Renascimento, preferiu manter-se fiel às formas arbitrárias de sua arte. Há todavia quem pretenda ver na Farsa de Inês Pereira, representada em 1523, uma estrutura trinitária, uma espécie de tentativa de adesão aos moldes do teatro clássico; mas o encanto do teatro vicentino reside em grande parte nesse desprezo da categoria tempo e consequentemente na quase total ausência da forma narrativa. Se executarmos algumas farsas (como é o caso da Inês Pereira e do Auto da Índia, onde o elemento narrativo existe), predomina no seu teatro a sucessão de pequeninos quadros, a lembrar a mesmo técnica da pintura narrativa medieval e das novelas de cavalaria.
            Mas, se o teatro vicentino não nos proporciona arquitetura cênica como aquela trazida pela Renascença; se lhe falta aquela estrutura equilibrada que é o privilégio das representações clássicas; se carece do poder sugestivo do cenário, Gil Vicente compensa com os recursos de sua profunda psicologia do homem. Se lhe falta o aparato cenográfico, sobeja-lhe a expressão viva dos seus tipos. A personagem e o dialogo sobem para o primeiro plano; é a caracterização do tipo que o dramaturgo procura realizar, não a personagem vivendo uma situação dramática – como no teatro clássico. A técnica vicentina na estilização dos tipos sociais consiste – como bem observou João de Almeida Lucas – na associação do processo etnográfico ao processo psicológico. “Costumeiras , usanças, crendices, particularidades dialetais, estropiações da linguagem (como a dos judeus, dos negros e dos ciganos), vestuários característicos, nada escapa a penetrante observação do dramaturgo: eis o retrato físico e objetivo. Mas o meio, as tradições locais, o gênero de vida, definem um tipo psicológico especial que se exterioriza em sentimentos peculiares”. Os judeus aparecem nas peças vicentinas fixados como tais na sua psicologia e no seu trato social, agenciando casamentos, carregando um bode às costas, estropiando as palavras (como quando Vidal exclama, na Farsa de Inês Pereira: “nome de Deu aqui somos”). Consoante informa Leite de Vasconcelos, o diabo aparece, nas tradições populares portuguesas, na figura de um bode, reconhecendo-se principalmente pelo pé. Ou porque a tradição popular havia fixado no judeu e no bode as duas formas arquetípicas do Diabo, ou porque Gil Vicente pretendesse sugerir com isso a idéia do bode expiatório que a Bíblia nos apresenta, ou ainda porque nas cerimônias da páscoa judaica o cabrito era o prato predileto, o certo é que Gil Vicente não perdia de vista os mínimos pormenores na estilização social, psicológica e lingüística dos seus tipos. No exagero do seu monoteísmo, os judeus diziam deu e não Deus, porque supunham-nos um índice de pluralidade; ou porque se tratava de um tabu lingüístico (que lhes vedava a reprodução do nome divino). Os negros, que já haviam feito a sua aparição literária como tema na poesia do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, ingressam no teatro de Gil Vicente em 1524, com a sua Frágua do amor. Nesta peça um negro se põe a falar com a deusa Vênus, numa linguagem caracteristicamente deturpada, com estropiações fonéticas e morfológicas que são vigentes ainda hoje na fala dos negros do Brasil: - a dissolução dos grupos consonantais (purutugá, furuta, foromosa), asa apócopes consonantais (como podê, vamo, muié), a redução dos ditongos (como ota por outra, dos por dous, poco, muto, dexa etc.); o emprego de a mim por eu, de estar por ser. Mas não é apenas a linguagem do negro que Gil Vicente caracteriza com admirável perfeição: também os falares exóticos dos mouros, que infestam a produção teatral espanhola da época e se caracterizam pelo “xexeo”; a linguagem dos ciganos (no Auto dos ciganos, no Auto da festa e no Auto da Lusitânia), povo que fez a sua aparição na Espanha em 1447 e em Portugal no início do século XVI. Identificados pelo “ciclo”, só muito tarde substituem o seu espanhol característico pela linguagem portuguesa. A linguagem rústica, por sua vez, tem o seu vocabulário típico: arrepinchar (renegar), escarnefuchar (zombar), cenreira (antipatia, aversão), entirrado (teimoso), samicas (talvez, sem dúvida), enha/inha (minha), cajo (caso), bofé, bofelhas (por minha fé, na verdade), pardicas (por Deus!), soma (em suma) etc., etc., bem como a linguagem das comadres e senhoras velhas, que ainda conservam o dintervocálico, já desaparecido no primeiro quartel do século XV: olhades, metedes, dizedes, avedes etc. Bastariam estas amostras dos linguajares exóticos e particulares, fixados com surpreendente fidelidade, para atestarmos o realismo etnográfico e lingüístico do seu teatro.
            E que dizer da extraordinária perícia com que Mestre Gil procura particularizar a psicologia infantil, na deliciosa cena da Comédia de Rubena, em que os pastorinhos Pedrinho e Afonsinho, Cismema e Joane disputam cada qual a superioridade de seu haveres, tudo isso num enternecido quadro de ingenuidade e singeleza? Diz Joane:

                                               E nós temos tanto mel
                                               Que trougue a nossa Isabel.
Intervém Cismena:
                                               E a mim hão de me comprar
                                               uã coifinha lavrada!
E Pedrinho:
                                               Temos tanta marmelada,
que minha mãe me há-de dar!

E volta Joane a sublinhar novas vantagens:

                                               E meu pai há de ir pescar,
tomará um peixe tamanho,
assi como o nosso tanho,
e não vo-lo-ei de dar.

Só um pincel de artista prodigioso observador da natureza humana poderia fixar com tanta autenticidade a rudimentar psicologia da criança. E o realismo com que Gil Vicente retrata a natureza universal dos pais? Na sua divertidíssima Romagem de agravados há uma cena saborosa em que Frei Paço examina a um rapazinho, cujo pai está presente. Frei Paço submete-o a provas de cartilha, de latim, de canto, mas o rapaz Bastião estropia tudo, e Frei Paço conclui pela incapacidade total do menino, destinado pelo pai a “rapaz d’Igreja”,

                                               não com devação sobeja,
                                               mas porque possa viver
                                               como mais folgado seja;

e o pai, que a tudo assiste, estava certo das aptidões do filho e assegura jubiloso: “Meu filho pera tudo tem engenho”. Gil Vicente registra, com incomparável maestria a notória cegueira dos pais, que vêem nos filhos genialidades e teimam em destiná-los a carreiras incompatíveis com as suas aptidões. E o realismo descritivo com que o dramaturgo anota em todos os seus pormenores as mais prosaicas cenas do convívio doméstico? – ou Inês Pereira a coser contrariada um travesseiro, ou o menino Salinho, no Auto da Lusitânia, a pedir um pente à irmã, Lediça, menina descuidada, ociosa e sempre desobediente à mãe com os cabelos sistematicamente despenteados e vítima de surras freqüentes do pai. A vida doméstica, com particular atenção às crianças, oferece inúmeros temas que Gil Vicente põe a circular, e que só mais tarde, no século XIX, adquirem foros literários.
            Por outros caminhos e outros processos, inteiramente estranhos à arte clássica, o dramaturgo acabou criando também um teatro de interesse universal, e por isso mesmo imorredouro. Gil Vicente soube amassar com mãos de artista os ingredientes que garantiram às suas criações um auditório permanente. O trovador que era descobriu a sua verdadeira vocação de artista dramático desde a noite em que invadiu a câmara da rainha D. Maria, doente do nascimento do enfante D. João,, na noite de 7 de junho de 1502.  Caracterizado de vaqueiro, proferiu o seu monólogo da visitação, suscitando com ele o espanto e o riso dos circunstantes. Gil Vicente descoberto o cômico; sentiu-se a partir desse momento decididamente nascido para o teatro, e partiu resoluto para a grande arte. Contrastando com a fisionamia formalista e circunspecta da corte que circundava com respeito o leito da rainha parturiente, o vaqueiro improvisado, na pessoa do próprio autor, irrompe pela sala a dentro, depois de haver vencido a resistência de pagens que guardavam a entrada da câmara:

                                               Pardiez!  Siete arrepelones
                                               me pegaron a la entrada,
                                               mas yo dí una puñada
                                               a uno de los rascones.
                                               Empero, se yo tal supiera,
                                               no veniera,
y si veniera, no entrara,
y si entrara, no mirara
de manera
que ninguno no me diera.

E deslumbrados com os resplendores do quarto régio, exclama na sua linguagem rústica e direta, linguagem que tomara emprestado do dialeto saiagu~es dos arredores de salamanca posto em voga por Juan del Encina seu modelo:

                                               Nunca vi cabaña tal
en especial
tan notable de memoria:
esta debe ser la gloria
principal
del paraíso terreal;

logo a seguir dirige-se atrevidamente para a Rainha, interpelando-a sem cerimônias:
Ó que sea, ó que no sea,
quiero decir a que vengo,
no diga que me detengo!
Nuestro consejo y aldea
envíame a saber acá
si es verdá
que parió Vuestra Alteza?
Mia fé si; que Vuestra Alteza
tal está
que señal dello me dá.

            Estava criado o teatro em Portugal. Não obstante elegesse Gil Vicente o falar almantino de Saiago para as suas principais criações: não obstante o diálogo ainda não tivesse feito a sua aparição; ainda que tentasse inclusive imitar neste monólogo o Auto del repelón de Juan del Encina, Gil Vicente havia descoberto um dos móveis fundamentais da arte representativa: o  condão de despertar o riso; o sortilégio de criar o cômico. E o dramaturgo jamais abandonará essa pedra de toque de sua vocação artística; e nas criações mais sérias de seu teatro sacro não deixou de recorrer ao cômico, desde as personagens do Auto da embarcação do Inferno ao Diabo sedutor e malicioso do Auto da Alma. O cômico em Gil Vicente não se cria pela situação da personagem, mas simplesmente pela estilização dos tipos, pelos jogos de palavra, pelo imprevistos da cenas ou pela dupla inadaptação. No Velho da Horta, não é a situação do velho de sessenta anos, apaixonado pela Moça, que suscita o cômico: mas o contraste entre o arrebatamento amoroso do Velho, (que perde a consciência do ridículo) e a ironia reflexiva da Moça (que procura troçar de sua tontices); a oposição entre o cínico estado de reflexão da Moça e a boa-fé romântica do Velho. Em qualquer que fosse a peça, quem poderia conter a gargalhada ao ouvir de improviso, no pórtico da Tragicomédia do Templo de Apolo, o autor referiu-se a rainha Ester catando pulgas de um cobertor por remendar, ou à Helena de Tróia correndo atrás de um porco? A mesmas inadaptação se observa entre os galanteios sinceros e arrebatados de um cortesão que penetra na loja do judeu e topa com a mocinha Lediça, e as respostas simplórias de quem se faz de desentendida. Diz o galanteador:

                                               Temo muito que me deixe

vosso amor pobre coitado

de favor com que me queixe.
Responde a moça:
Lançai na sisa do peixe,
e logo sois remediado.
         - Não falo, senhora, disso,
porque eu me queimo e arço
com dores de coração.
                                    Led. – Muitas vezes tenho eu isso:
diz Mestr’Aires que é do baço,
e reina mais no verão.
Este engraçadíssimo diálogo se alonga por alguns minutos, até que o cortesão, num transporte de amor, exclama:

                                               Senhora, por piedade
                                               que entendais minha razão;
entendi minha verdade,
entendi minha vontade,
e mudareis a tenção:
entendi bem minha dor
e mil maleitas quartãs,
que por vós me hão de matar.
                                   Led. – Assi é, meu pai, Senhor,
                                               que tem dores de almorrãs (hemorróides)
                                               que é coisa d’apiedar.

            Outro momento de extraordinário poder cômico, talvez jamais intuído por qualquer dramaturgo até o seu tempo, ocorre na Farsa do escudeiro: Gil Vicente procura despertar o cômico através de um dueto em que só um dos interlocutores é ouvido pela platéia. O escudeiro Aires Rosado, depois de temperar as sua guitarra e experimentar a voz desafinada com as notas da escala musical, vê aparecer à janela a sua querida Isabel: os dois se põem a dialogar e Isabel a falar tão mansinho, que ninguém a ouve – mas pelas respostas do Escudeiro se pode conjecturar o que ela diz. – Tal diálogo, que põe cada vez mais em ridículo o nobre decadente, é – segundo Gino Savioti – das cenas mais originais que o teatro cômico já imaginou. Num esforço por compreender, através dos gestos e dos movimentos da boca, o que lhe diz Isabel, exclama Aires Rosado:

Senhora, não vos ouço bem...
Oh! Que vos faço eu aqui?...
Que é senhora? Eles a mi?...
Não hei medo de ninguém.
.................................................
Que são? Que são?... Rebolarias?...
E, mais, rides vós de mi?...
Eu porque me hei-de ir daqui?...
Faço-vos descortesias?...
Mana Isabel!... Ouvis?...

Infelizmente são raros os encenadores de teatro vicentino que conseguem fixar a beleza cômica desta passagem.
            O recurso ao cômico, o apelo aos momentos do mais enternecido lirismo; o sublime de cambulhada com os imprevistos da farsa; a inspiração que não seleciona os temas (dando portanto a impressão de que qualquer assunto serve), tudo isso, num desapego deliberado de estéticas preconcebidas, contribuiu para a imortalidade literária do teatro vicentino. Gil Vicente criou arte sem atender aos cânones da arte.
            Por isso mesmo é difícil uma segura classificação literária de sua peças. Misturando as mais antagônicas formas expressivas, a sátira com os mistérios religiosos, a alegoria com a expressão direta, a poesia lírica com o ridículo de um velho apaixonado ou de um nobre decadente metidos em cenas donjuanesca; levando para o palco as outras formas literárias – como as matérias bíblicas e as novelas de cavalaria; recorrendo freqüentemente ao recheio lírico como adorno ou recurso para marcar a separação das partes constitutivas da composição; fazendo o auditório entrar em cheio na representação 9como no Velho da horta, em que os santos invocados na ladainha da alcoviteira são os próprios espectadores da peça), Gil Vicente confundiu os estudiosos da literatura representativa, que hoje propõem as rotulações mais díspares numa tentativa quase sempre forçada de arrumar literariamente a sua produção dramática. A darmos crédito às datas de representação estipuladas por Braamcamp Freire das peças vicentinas, podemos afirmar, inclusiva, que não nos é possível fixas os estágios evolutivos de sua técnica teatral. O seu teatro oferece autos e baixos desde o inicio de sua carreira literária; liberto inteiramente de preceptivas norteadoras da criação dramática, Gil Vicente possui aquele raro sortilégio de artista – diz Gino Savioti – que consiste em transfigurar a imagem da realidade em espetáculo. Gil Vicente foi um extraordinário criador de vida representativa.


Classificação de suas peças
            Se executarmos certas formas que são esporádicas no teatro vicentino – como o sermão burlesco (que ocorre apenas duas vezes em suas peças: um pregado pelo Frade Sandeu no início do Auto de Mofina Mendes, e outro por um Frade no Auto das fadas sobre o tema “amor omnia vincit”) e o monólogo (de que há também dois casos: o do Vaqueiro e O pranto de Maria Parda), poderíamos distribuir as peças vicentinas em:

a-) AUTOS (que versam os seus temas tradicionais: mistérios, moralidades, milagres e episódios pastoris) – a que pertence a maioria de suas obras: Auto pastoril castelhano (1502), Auto dos Reis Magos (1503), Auto da Sibila Cassandra (1509), Auto da fé (15010), Autos das barcas (1517-1518), Auto pastoril português (1523), Auto da Cananea (1534), Auto de mofina Mendes (1534) etc.;

b-) TEATRO ROMANESCO (cujo temário é via de regra extraído das novelas de cavalaria): Comédia de Rubena (1521), D.Duardos (1522), Comédia do viúvo (1524), Amadiz de Gaula (1533);

c-) FANTASIAS ALEGÓRICAS (cujos antecedentes são os “momos” realizados no fim da Idade Méida, especialmente no reinado de D. João II; estas fantasias, que aparecem emolduradas pelos processos técnicos da pura cenografia alegórica, lembram muito o nosso teatro de revista): Fraguá do Amor (1524), Nau de amores (1527), Auto da Lusitânia (1532) e outras;

d-) FARSAS: 1. Episódicas, limitando-se à apresentação de um tipo ou série deles: Juiz da Beira (1525), Farsa dos almacreves (1527), O clérigo da Beira (1529), Romagem de agravados (1533) etc.; 2. Novelescas (ou narrativas), apresentando já uma intriga, numa história mais ou menos completa: Auto da Índia (1509), Farsa dos físicos (1512 ou 1516), Quem tem farelos? (1515), Inês Pereira (1523).

            Deste quadro sumário se observa que Gil Vicente se manteve fiel à tradição do auto durante toda a sua carreira dramática; que o per[iodo climático dessa produção corresponde aos anos de 1517-1519, em que cria os autos das três Embarcações e o Auto da alma; que, à medida que se foi libertando da sugestão inicial do teatro de Juan del Encina (tão evidente nos anos de 1502-1509), Gil Vicente imprime uma tendência cômica ao seu teatro, dando nascimento à farsa; em 1523, após palmilhar novas direções estéticas, voltou à farsa novelesca para dar, nesse ano e no ano de 1526, as suas mais acabadas criações artísticas com a Farsa de Inês Pereira e a Farsa de almocreves; e que, ao deixar provisoriamente o teatro religioso em 1520, o dramaturgo tentou duas novas orientações: o teatro romanesco de fundo cavaleiresco e o teatro alegórico.

Auto da Barca do Inferno

            As almas dos mortos, após o traspasse, deparam-se com um braço de mar. Duas barcas as aguardam: uma com destino ao Inferno e a outra, ao Paraíso, capitaneadas respectivamente, pelo Diabo e por um Anjo. O Diabo anuncia a largada e ordena ao Companheiro que faça imediatamente as manobras necessárias, arrumando lugar para as pessoas que virão.
            Todas as almas, carregadas pelos pertences e o que de mais valioso possuíam, procuram a barca do inferno, maior e mais acolhedora.
            O Fidalgo aproxima-se com um pajem que lhe segurava o rabo do manto e carregava uma cadeira de espaldas que distinguia o fidalgo das pessoas vulgares. O Diabo lhe revela que o pai também havia ido para o Inferno e, então, decepcionado, o Fidalgo encaminha-se para a barca da glória. Porém, por haver desprezado os homens do povo, uma vez que era nobre, e ter uma amante que lhe era infiel, a barca do Inferno lhe era o único caminho. O Diabo, entretanto não permite que a cadeira entre na barca, já que o fidalgo terá uma de marfim marchetada de dores.
            O Onzeneiro, com o coração cheio de cobiça e carregando uma grande bolsa, deseja “tornar ao mundo”, porém acaba por embarcar com o Diabo surpreendendo-se por encontrar lá o Fidalgo.
            O Parvo Joane, ao se ver com o Diabo, profere uma série de palavras desconexas, praguejando contra ele e, chegando a admitir sua debilidade mental, é aceito na barca da glória pelo Anjo que o manda aguardar a chegada de outros eventuais passageiros para o mesmo destino.
            Já o Sapateiro, Jam Antão, surge carregado de formas, empregando termos que lhe são familiares pelo ofício e depreciando a barca do inferno, recorre ao Anjo, que o renega por ter roubado durante sua vida.
            Um Frade Dominicano, acompanhado de uma moça, traz um pequeno escudo e espada nas mãos, além de usar um capacete sob o capuz e dançar. O Diabo lhe diz que não tem o que temer do destino e a seguir o Frade apresenta seus dotes de esgrimista. Dirigem-se à barca da glória, o Frade e a moça surpreendendo o Parvo por vê-lo acompanhado de uma mulher. O Frade acaba aceitando sua ida para o Inferno.
            Brisida Vaz, a alcoviteira, exprime sua pretensa inocência e por não querer embarcar com o Diabo, acaba o surpreendendo. O prostíbulo de Brisida era de amar e desamar, com um estrado de cortiça onde se encontravam os clientes e as moças e, por isso, sua carga de pecados era bem pesada, embora ela não reconhecesse, comparando-se à Santa Úrsula na conversão das virgens.
            Assim, vão desfilando as personagens de Gil Vicente no alto da barca do Inferno e, quando percebem o caminho que estavam tomando ao escolher o Demônio como guia, apressam-se a passar à barca da glória, sendo recusada a entrada pelo Anjo por causa das atitudes tomadas na terra.
            O Judeu pecou comendo carne em dia de jejum, urinando nos mortos da Igreja, sendo renegado até mesmo pelo Diabo, sendo carregado então de reboque ao Inferno em barca separada; o Corregedor, carregado de processos judiciais, ao invés de corrigir o crime, era um “descorregedor”, sendo papel dos processos bom para as chamas do Inferno; o Procurador, representante do poder central junto dos tribunais, que não esperava ter morrido tão depressa, foi amaldiçoado pelo Anjo, juntamente com os autos e o Corregedor; o Enforcado decepcionou-se com as promessas feitas por Garcia Muniz (tesoureiro da balança da Casa da Moeda de Lisboa) de que os que morriam na forca estariam livres do Diabo, pois o purgatório teria sido o Limoeiro (antigo paço real em Lisboa e, já no tempo de D. João II, era cadeia).
            Por fim, apenas os Quatro Cavaleiros da Ordem de Cristo, mortos em defesa da fé, cantando e absolvidos de culpas e penas, alertam aqueles que se preocupam apenas com a vida terrena, complementando o auto da moralidade, diagnóstico de um período sócio-político-cultural através de diversos processos que vão da reflexão ao cômico da situação, da linguagem, das intrigas e atitudes, do qual transcrevemos trechos extraídos da edição avulsa da Biblioteca Nacional de Madri.

“Auto da Barca do Inferno
Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha dona Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado aopoderoso príncipe e mui alto rei dom Manuel, primeiro de Portugal desse nome.
Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se figura que, no ponto que acabamos de expirar, chegamos subitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dois batéis que naquele porto estão, scilicet, um deles passa pêra o paraíso, e o outro pêra o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro.[...]”

EXERCÍCIOS

1. Sobre o Auto da barca do inferno, de Gil Vicente, é INCORRETO afirmar:
a) o autor apresenta severa crítica à prepotência e tirania dos nobres, e à desonestidade e corrupção dos homens da lei.
b) na luta entre o Bem e o Mal são favorecidos aqueles que em vida pertenceram à classe social privilegiada.
c) o Diabo atua como agente crítico, que revela as mentiras e falsidades das personagens.
d) pelo julgamento do Anjo, o Parvo embarca para o paraíso, uma vez que o céu pertence aos simples.
e) o autor vale-se do tema do Juízo Final para estabelecer uma crítica à sociedade, fazendo desfilar em cena os tipos sociais identificados através de suas qualidades e defeitos.

2. Assinale a alternativa correta sobre o teatro de Gil Vicente.
a) Gil Vicente é o primeiro e maior autor do teatro português. Sua dramaturgia de molde clássico é composta em prosa brilhante, capaz de recriar artisticamente a fala dos vários tipos que compunham o cotidiano lusitano quinhentista, do campo e da cidade.
b) Gil Vicente é o primeiro e maior autor do teatro português. Sua dramaturgia de molde medieval é composta em prosa brilhante, capaz de recriar artisticamente a fala dos vários tipos que compunham o cotidiano lisboeta quinhentista, embora não tivesse a mesma habilidade quando se tratava da fala das personagens rurais.
c) O teatro de Gil Vicente apresenta as marcas da transição entre a cultura medieval e a renascentista. Da primeira, observa-se o uso de formas dramáticas como a do auto, que segue a chamada regra das três unidades; da segunda, nota-se o espírito crítico próprio da mentalidade do Humanismo.
d) A dramaturgia de Gil Vicente é o exemplo mais notável de teatro poético em língua portuguesa. Seus versos rimados, metrificados e agrupados em estrofes têm naturalidade e espontaneidade da fala. Todos os tipos sociais de Portugal quinhentista estão magnificamente representados em suas peças, que, embora derivadas de modelos formais medievais, apresentam a mentalidade crítica do Humanismo.
e) O teatro de Gil Vicente, pelo moralismo cristão que o caracteriza, deve ser visto como legítimo representante da mentalidade contra-reformista, mesmo apesar de seu caráter satírico hilariante.

3. O trecho abaixo retrata a fala do Anjo, no julgamento de 4 cavaleiros que morrido nas guerras cristãs. Leia-o e responda:
ANJO – “Ó cavaleiros de Deus,
                A vós estou esperando,
                Que morrestes pelejando
                Por Cristo, Senhor dos céus!
                Sois livre de todo o mal,
                Santos por certo sem falha,
                Que quem morre em tal batalha
                Merece paz eternal ”
a) Por que os cavaleiros são perdoados de seus pecados?
b) Que atitude do autor se revela através dessa passagem?

4. A cena seguinte, da peça “Auto da barca do inferno”, apresentada a chegada do parvo Joane no porto das almas
“ANJO – Quem és tu?
 JOANE – Samica alguém
 ANJO – Tu passarás, se quiseres;
               Porque em todos teus fazeres,
               Per malícia non erraste
               Tua simpreza te abaste
               Para gozar dos prazeres.”

A expressão “samica” quer dizer “talvez”. Assim, Joane diz ser “talvez alguém”. O que essa frase indica?
a) a indecisão de Joane quanto à sua própria identidade. Ele está confuso depois da conversa mantida com o Diabo, momentos antes, que o convenceu a tornar-se um pecador. Por essa indecisão, é condenado ao Purgatório.
b) a presunção de Joane quanto à sua condição social. Apesar de simplório, ele disfarçava sua pobreza, freqüentando a aristocracia e cometendo pequenos furtos para sustentar seus luxos. Por essa presunção, é condenado ao Inferno.
c) o desprezo de Joane pelo Anjo. Conhecer de suas virtudes, ele acredita que seu lugar no Céu está garantido, não necessitando da aprovação do Anjo para embarcar. Esse desprezo faz com que o Anjo se recuse a levá-lo.
d) a desconfiança de Joane. Confundindo a Barca do Céu com a do Inferno, ele imagina que o Anjo é o Diabo tentando enganá-lo; por isso, teme revelar sua identidade. Ludibriado pelo Diabo, acaba indo para o inferno.
e)a modéstia e a simplicidade de Joane. Na sua humildade, não se considera em condições sequer de afirmar-se como alguém, daí a dúvida que expressa, esse tipo de atributo é que o faz merecedor do céu.

5. Leia com atenção o fragmento extraído de “Auto da Barca do Inferno” de Gil Vicente e responda:
“[...] Diabo: Que é isso, padre?! Que vai lá?
Frade: Deo gratias! Som cortesão.
Diabo: Sabeis também o tordião?
Frade: Porque não? Como ora sei!
Diabo: Pois entrai! Eu tangerei
            E faremos um sermão.
            Essa dama é ela vossa?
Frade: Por minha la tenho eu,
           E sempre a tive de meu[...],”
a-) O que representa a moça que acompanha o Frade? É comum os personagens dessa obra trazerem alguma coisa marcante da sua vida na terra?
b-) Qual o destino do Frade?

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