segunda-feira, 4 de outubro de 2010

FUVEST/UNICAMP 2010– AULA DE LIVRO

FUVEST/UNICAMP 2010– AULA DE LIVRO
VIDAS SECAS
(Graciliano Ramos)

“Será um romance? É antes uma série de quadros, de gravuras em moldura, talhadas com precisão e firmeza”.
(Lúcia Miguel Pereira, citada por Antônio Candido em ficção e confissão)

Dados Biográficos:
“O decênio de 1930 teve como característica própria um grande surto do Romance, tão brilhante quanto o que se verificou entre 1880 e 1910, e que apenas em pequena parte dependeu da estética modernista. Mas sem ela, e, sobretudo sem o movimento que lhe correspondeu, os novos romancistas não teriam tido provavelmente a oportunidade de se exprimirem e serem aceitos, desde logo, com o maior entusiasmo.”
(Antonio Candido – Presença da Literatura Brasileira)
            A Segunda Geração do modernismo brasileiro significou um estado adulto e amadurecido de nossa literatura moderna.
            Com relação à prosa, uma multiplicidade de tendências ganha espaço. Na maioria dos casos, trata-se de escritores que aproveitam a tradição de análise psicológica e social herdada do século XIX, alguns apresentando agudo enfoque metafísico e não menos agudo senso dramático dos problemas humanos.
            A prosa cosmopolita de José Geraldo Vieira, a prosa de introspecção e de análise psicológica de Cornélio Pena, Otávio de Faria, Ciro dos Anjos, Lúcio Cardoso e Dionélio Machado, a prosa essencialmente modernista de João Alphonsus e Aníbal Machado, a prosa surrealista de Jorge de Lima e a prosa que recria o cotidiano, de Érico Veríssimo, constituem alguns dos exemplos mais significativos da referida variedade de vertentes da nossa produção romanesca, registrada a partir da década de 30.
            No entanto, destaca-se neste panorama a prosa regionalista do nordeste. Ela foi a tendência que teve maior repercussão e importância n época, por ter assumido uma visão crítica das relações sociais, por ter focalizado os problemas da seca, do coronelismo e da decadência do modelo oligárquico patriarcal, com a extinção dos antigos engenhos açucareiros.
            Fortemente influenciada pelas idéias de Gilberto freire, autor do Manifesto regionalista (1926), de Casa Grande e Senzala e grande mentor do “Grupo Regionalista do Recife”, que se formou em 1928, podemos afirmar que essa geração redescobre o Brasil, ao mesmo tempo em que contribui com sua universalização, vendo o regional numa perspectiva política, predominantemente marxista, e assim fundando o Neo-Realismo.
Denominamos Neo-Realismo o tipo de Realismo que substitui o caráter cientificista e determinista do Naturalismo do século XIX por um enfoque político, predominantemente marxista, de problemas regionais como a condição e os costumes do trabalhador rural, a seca, a miséria etc.
Tais problemas, vistos na perspectiva da luta de classes, da opressão do homem pelo homem que caracteriza a sociedade capitalista, ganham conotação universal e intemporal, saindo do pitoresco e do localismo, tradicionais em nossa produção regionalista.
José Américo de Almeida, Rachei de Queirós e Jorge Amado, dentre outros criadores, exemplificam a produção Neo-Realista brasileira, embora José Lins do Rego e, sobretudo Graciliano Ramos constituam os principais representantes do período.
Pouco tempo depois, nomeado diretor da Instrução Pública de Alagoas, é demitido e preso (1936), sob a suspeita de ter participado da Aliança Nacional Libertadora. O relato de sua experiência na prisão encontra-se em Memórias do Cárcere.
Em 1945, já considerado nosso maior romancista, depois de Machado de Assis, entrou no Partido Comunista Brasileiro. Em 1951 elegeu-se presidente da Associação Brasileira de Escritores, sendo do ano seguinte a excursão para a Rússia e os países socialistas, que relatou na obra Viagem. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1953.
Obra:
“Em todas as obras de Graciliano Ramos estão presentes a correção da escrita e a suprema expressividade da linguagem, assim como a secura da visão de mundo e o acentuado pessimismo, tudo marcado pela ausência de qualquer chantagem sentimental ou estilística. E o medo de encher lingüiça é um dos motivos de sua eminência, de escritor que só dizia o essencial e, quanto ao resto, preferia o silêncio. Entre o nada primordial anterior ao texto, e o risco de acabar em nada devido a insatisfação posterior, se equilibra a sua obra essencial, uma das poucas em nossa literatura que parece melhor com a passagem do tempo, porque mais válida à medida que a lemos de novo.”
(Antônio CANDIDO, Ficção e Confissão. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992.)

Vidas Secas (1938) e São Bernardo (1934) são consideradas as obras principais de Graciliano Ramos. Além destes, há outros trabalhos do escritor, também importância fundamental, tais como Angústia, Insônia, Caetés, Histórias de Alexandre; Alexandre e Outros Heróis, Linhas Tortas, Dois Dedos, Histórias incompletas, Histórias Verdadeiras, Histórias Agrestes, Viventes de Alagoas etc.
Considerado o maior representante da geração neo-realista nordestina, nasceu em Quebrângulo, Alagoas, em 1892, tendo sido o primogênito de um casal sertanejo de classe-média que teve quinze filhos. Autodidata em literatura, foi prefeito da cidade de Palmeira dos Índios (1928-1930), renunciando ao cargo por motivos políticos.
VIDAS SECAS
Narrador
O narrador não quer identificar-se com o personagem, e por isso há na sua voz uma certa objetividade de relatar. Mas quer fazer às vezes do personagem, de modo que, sem perder a própria identidade, sugere a dele. É como se o narrador fosse, não um intérprete mimético, mas alguém que institui a humanidade de seres que a sociedade põe à margem, empurrando-os para a fronteira da animalidade. Aqui, a animalidade reage e penetra pelo universo reservado, em geral, ao adulto civilizado.
(Antônio Cândido)
Vidas Secas — publicado em 1938 — é o último romance de Graciliano Ramos. Diferentemente dos anteriores, estrutura-se por meio de narrativa em terceira pessoa e possui capítulos que parecem “peças autônomas”, quer dizer, que se encaixam de forma descontínua, com grande talento artístico.
Nele o narrador, que não se confunde cm as personagens, institui, cria, sugere a humanidade delas, com linguagem “precisa e firme”, que “traduz” o silêncio que as caracteriza. Será um romance? É antes urna série de quadros, de gravuras em madeira, talhadas com precisão e firmeza.
(LÚCIA MIGUEL PEREIRA, citada por Antonio Candido, em Ficção e Confissão).

Tais personagens — Fabiano, sinhá Vitória, os filhos e Baleia, a cachorrinha que age, pensa e sente como gente — são os membros de uma família desumanizada, reduzida à condição animalesca, pela precariedade de uma existência cotidianamente aviltada por situações-limite, de rebaixamento físico, social, moral e humano.
Obrigada a periodicamente fugir da seca nordestina e por isso a tornar-se nômade, esta família não tem teto que não seja transitório, nem perspectiva de trabalho que não seja ocasional.
Assim, tanto as péssimas condições climáticas quanto a opressão social fazem com que as personagens de Vidas Secas sejam silenciosas e hostis, comportem-se como seres incomunicáveis, não apenas em relação às pessoas da cidade, mas também em relação a elas mesmas.
Entretanto, o narrador, relativizando a sua condição de bichos, de brutos, desvenda-lhes a humanidade submersa, reinventa o mundo interior de cada um deles.
Vamos estudar o sofisticado foco narrativo de Vidas Secas, atentando para o fato de que não se trata de um narrador onisciente. Em vez disso, temos um narrador que por um lado relata com objetividade e precisão, mas, por outro, adere tão profundamente às personagens que lhes institui a humanidade dilacerada.
Exemplo 1
A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor dos bichos moribundos.
— Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça.
A seca aparecia-lhe com um fato necessário e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era o culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinhá Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados no estômago magro, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a sinhá Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinhá Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a gutural, designou os juazeiros invisíveis.
E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande.
(Cap. 1, “Mudança”)
Observe que este fragmento se inicia com a descrição animizada da natureza, crestada pela seca: “A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso, salpicado de manchas brancas que eram ossadas”.
A esta descrição, com contraste cromático e certa dose de personificação, soma-se o seu inverso: a descrição da brutalidade de Fabiano com o filho. No entanto, o narrador a justifica: “Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário(...) precisava chegar, não sabia onde”.
Notamos então que o narrador combina o relato dos fatos com decifração do comportamento animalesco da personagem, por meio da análise psicológica.
Tais fatos, é importante lembrar, conotam uma situação-limite, sem saída: “Sinhá Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção afirmou com alguns sons guturais que estavam perto”.
Após a mulher indicar uma possível direção a seguir, “Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados no estômago magro, frio como um defunto”.
A partir de então, Fabiano vai recobrando a humanidade: “Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena”.
Além de nos fazer associar o desespero de Fabiano com a desumanidade que comete, para depois voltar a interpretá-lo no movimento oposto, o narrador aproxima-se do personagem quando transforma em linguagem sua interioridade, por meio do discurso indireto livre: “Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato”.
Tais procedimentos narrativos — o relato dos fatos, a análise psicológica dos personagens, a exposição de seu universo mental com a utilização do discurso indireto livre — combinam-se com grande coesão, longo da obra.
Assim, o leitor pode compreender um de seus aspectos fundamentais: a oscilação do protagonista entre ser sujeito e sentir-se objeto, entre a condição humana a que pertence e a situação de desumanização a que está exposto.
Nesta oscilação, que se estende às outras personagens do romance, Fabiano, Sinhá Vitória e os meninos adquirem vida — vida atravessada constantemente pela morte, mas vida.
Exemplo 2
Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber. Tinha?
Não tinha.
—Está aí
Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria satisfeito.
Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado era seu Tomás da bolandeira. Por quê? Só era porque lia demais [...].
Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros mas não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem remediado ser cortês. Até o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam ele. Ah! Quem disse que não obedeciam?
(Cap. 2, “Fabiano”)
Neste trecho aparece melhor a forma como o narrador faz falar a voz silenciada do personagem, isto é, empresta-lhe palavras para que se expresse interiormente.
A frase — “Tinha o direito de saber. Tinha? Não tinha” — exemplifica várias passagens em que Fabiano se interroga sobre a própria identidade humana e, embora a negue, aqui em termos do seu direito à instrução, a interrogação prevalece, fixando a humanidade da personagem.
Entre o medo e o fascínio pelo conhecimento, que vê como algo mítico; entre as críticas a seu Tomás da bolandeira, que representa o próprio conhecimento, e a admiração por aquele homem, Fabiano novamente oscila, o que faz em relação a outros atributos humanos que deseja encontrar em si, mas que ao mesmo tempo se nega acreditar possuir.
Exemplo 3
Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pêlo, e ficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar sua admiração à dona.
Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras. Imitando gente. Mas sinhá Vitória não queria saber de elogios.
— Arreda!
Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada e com sentimentos revolucionários.
(Cap. 4, “Sinhá Vitória”)
Estamos vendo que o discurso indireto livre e os monólogos interiores, os fluxos de consciência dos personagens, constituem recursos importantes para a compreensão deste foco narrativo de grande densidade artística.
No entanto, o melhor exemplo de tal procedimento é Baleia, a cachorrinha com alma, sentimentos, pensamentos e sensibilidade. Ao levar um pontapé de Sinhá Vitória quanto tenta elogiá-la, ela afasta-se “humilhada e com sentimentos revolucionários”, quer dizer, institui um parâmetro de humanidade que ora se contrapõe à desumanidade dos seres humanos, ora parece representar um veículo de sua humanização.
Particularmente no fragmento apresentado podemos observar que, enquanto as pessoas viram bichos, o bicho, convertendo-se em pessoa, torna-se uma alegoria, um símbolo da temática central do romance.
Sendo assim, concluímos que o processo narrativo de Vidas Secas, na medida em que recria e institui as dúvidas de Fabiano e sinhá Vitória, traduzindo-lhes os pensamentos confusos sem “clareá-los” como faria um narrador onisciente, é um dos principais fatores do raro equilíbrio artístico da obra, da originalidade com que se esculpe o ser humano universal, a partir de um contexto regionalista brasileiro: a seca do nordeste, a opressão dos pobres, a condição animalesca em que vivem.
A existência deste contexto pode nos levar a classificar Vidas Secas como “romance regionalista” ou como “romance proletário”, assim como o brilhantismo com que Graciliano Ramos escava a humanidade embotada dos personagens pode, por sua vez, levar-nos a pensar que se trata de um “romance psicológico”.
Embora possua as três dimensões, afirmamos que a obra as transcende, tornando inviáveis e redutoras tais classificações.
Que outros fatores fazem de Vidas Secas um romance difícil, se não impossível, de classificar? Vamos aprofundar a discussão, estudando o enredo do livro.
Enredo
Ao referir-se à “série de quadros, de gravuras em madeira, talhadas com precisão e firmeza” que caracteriza Vidas Secas, Lúcia Miguel Pereira alude ao caráter autônomo e completo dos capítulos do livro.
Embora realmente possam ser lidos como peças independentes, e assim tenham sido publicados em jornais, tais capítulos reúnem-se com uma organicidade exemplar. Isto porque sua estrutura descontínua, não-linear, reitera o isolamento das personagens, representa artisticamente a instabilidade de sua existência de retirantes.
Além disso, os capítulos relacionam-se pelo mesmo processo associativo que caracteriza os pensamentos confusos de Fabiano e sua família.
Vejamos como se organiza o enredo de Vidas Secas, sintetizando cada um de seus 13 segmentos/capítulos:
Cap.1 - Mudança: episódio: a família de retirantes chega a uma velha fazenda arruinada e abandonada.
Cap.2 - Fabiano: episódio: Fabiano procura uma novilha para curá-la de bicheira.
Cap.3 - Cadeia: episódio: Fabiano vai à cidade fazer compras, bebe uma pinga e é convidado para um jogo de cartas pelo “soldado amarelo”. Ambos perdem dinheiro, Fabiano decide ir embora, mas o soldado o provoca, pisando em seus pés. Fabiano solta um palavrão, e é preso e surrado.
Cap.4 - Sinhá Vitória: episódio: Sinhá Vitória prepara uma refeição para a família.
Cap.5 - O menino mais novo: episódio: O menino tenta imitar o pai, que sobe numa égua, cai e não se machuca, fazendo o mesmo com um bode e se machucando.
Cap.6 - O menino mais velho: episódio: O menino ouve a palavra “inferno”, acha-a bonita e procura aprender o seu significado com a mãe, que o repele brutalmente.
Cap.7 - Inverno: episódio: A família reúne-se numa noite de inverno, em que Fabiano tenta contar histórias, enquanto os meninos passam frio.
Cap.8 - Festa. episódio: A família vai à cidade, comemorar a festa de Natal.
Cap.9 - Baleia. episódio: Baleia adoece e Fabiano a mata, temendo que sofra de hidrofobia e passe o mal para os meninos.
Cap.10 - Contas: episódio: Fabiano é lesado pelo patrão no acerto de contas, e, apesar de as contas do patrão não coincidirem com as de sinhá Vitória, não se defende. Ao contrário, humilha-se e pede desculpas ao patrão.
Cap.11 - O soldado amarelo: episódio: Um ano após ter sido preso pelo soldado amarelo, Fabiano o reencontra em seu território: a caatinga. Embora deseje vingança, acaba curvando-se e ensinando o caminho ao soldado amarelo.
Cap.12 - O mundo coberto de penas: episódio: Na iminência de outro período de seca, Fabiano e sinhá Vitória preparam-se para partir.
Cap.13 - Fuga: episódio: a família deixa a fazenda e foge para o Sul.
Comentário Geral sobre o Enredo
A quase ausência de acontecimentos nos capítulos-episódios mostra-nos que eles não constituem o aspecto central da obra.
No entanto, um elemento fundamental de seu enredo é a proximidade entre o primeiro e o último capítulos: “Mudança” e “Fuga”. Vejamos a opinião de Antonio Candido sobre o assunto:
Este encontro do fim com o começo [...] forma um anel de ferro, em cujo círculo sem saída se fecha a vida esmagada da pobre família de retirantes — agregados — retirantes, mostrando que a poderosa visão social de Graciliano Ramos neste livro não depende de ele ter feito “romance regionalista” ou “romance proletário”. Mas do fato de ter sabido criar em todos os níveis, desde o pormenor do discurso até o desenho geral da composição, os modos literários de mostrar a visão dramática de um mundo opressivo.
(Antônio Candido)
Do segundo ao décimo segundo capítulos, a família vive como agregada na fazenda, para cujo proprietário Fabiano trabalha. Trata-se, assim, de uma fase de “descanso” em relação ao nomadismo provocado pela seca.
No período correspondente a tal fase, que abrange quase a totalidade do romance, em vez de ação, o foco é o universo interior das “gravuras de madeira”, das criaturas que o povoam, como mostraremos, comentando dois belíssimos capítulos: “Inverno” (cap.7) e “Baleia” (cap. 9).
Em “Inverno”, Fabiano, otimista com a chuva que cai, permite-se sonhar: tenta relatar histórias incompreensíveis, exercendo em todas elas um desejado papel de herói. Sinhá Vitória, que dorme numa cama de varas, com um pau no meio e cheia de pulgas, sonha com uma cama de couro, uma cama de gente.
Assim, em vez de alimentar o sonho do marido, preocupa-se com a possibilidade de enchente, a qual faria a família dormir nas árvores, como os preás. O espírito prático que lhe traz essa preocupação é compensado pelo otimismo com que confia a Deus a proteção da família e imagina que “a casa é forte”, que, se não resistisse, “voltariam quando as águas baixassem”.
Os meninos, “sentindo frio numa banda e calor na outra, não podiam dormir com as lorotas do pai”. Enquanto o mais novo extasia-se em cada luta que Fabiano vence, bate palmas para cada façanha de que o pai acredita-se capaz, e assim alimenta o próprio sonho, o menino mais velho percebe que “Fabiano modificava a história — e isto reduzia-lhe a verossimilhança”, o que o desilude perante “um herói humano e contraditório”.
Quanto a Baleia, enjoada com o barulho, permanece paciente, à espera de que a deixem em paz, sonhando:
Varrido o chão com a vassourinha, escorregaria entre as pedras, enroscar-se-ia, adormecida no calor, sentindo o cheiro das cabras molhadas e ouvindo rumores desconhecidos, o tique-taque das pingueiras, a cantiga dos sapos, o sopro do no cheio. Bichos miúdos e sem dono iriam visitá-la.
Em síntese, este capítulo se constitui de um conjunto de monólogos interiores através dos quais observamos cada personagem entregue ao próprio devaneio, ao longo de uma “reunião” em que o misto de calor e frio, de luz e sombra — ambos provocados pela fogueira que se mantém acesa, mas não aquece nem ilumina o suficiente — dá a impressão visual e tátil do gigantesco silêncio que isola as personagens.
Além do contexto comum, aproxima-os mais os sonhos e os outros sentidos que a linguagem verbal, substituída por rugidos, gesticulações, interjeições e “uma fala dura e rouca, entrecortada de silêncios”.
No Capítulo 9, que relata a morte de Baleia, Sinhá Vitória maltrata rudemente os filhos, para impedi-los de sofrer a perda da companheira, que Fabiano precisa matar por suspeita de hidrofobia. Ao mesmo tempo, “de coração pesado” lamenta que o marido não espere mais um dia para ver se a execução é indispensável.
Enquanto Fabiano procura realizar a tarefa com firmeza, embora apenas fira a cachorra no primeiro tiro, sendo obrigado a dar o segundo, Baleia — “um bicho diferente dos outros” — oscila entre o desejo de mordê-lo e o reconhecimento de que jamais o faria: “Tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas”.
Assustada com a interrupção da rotina, a “criaturinha”, com uma pata ferida pelo primeiro tiro, antes de vir o segundo, encosta a “cabecinha fatigada” na pedra, querendo dormir.
Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.
Aqui, como no capítulo “Inverno”, sonho e realidade, vida e morte, humanidade e desumanidade, revolta e submissão se roçam, agora matizados pelo lirismo desta “criaturinha única”.
Misto de animal, criança, poeta, nela reconhecemos um ser delicado e frágil, magicamente tecido de cada um dos seres do romance, de cuja animalidade passamos a ver “a outra face”.
Para isso, vamos estudar as personagens de Vidas Secas, utilizando-nos dos episódios e de outros elementos do enredo para ampliar a nossa percepção a respeito de como se estruturam.
Personagens
Fabiano
No Capítulo 2, intitulado “Fabiano”, enquanto o vaqueiro procura a novilha, sente-se satisfeito com o fato de ter arranjado emprego na fazenda, o que o faz exclamar que “é um homem”.
Por outro lado, entretanto, ao se lembrar de que vive em terra alheia, cuida de animais alheios, corrige a exclamação dizendo-se um bicho, um cabra, um macaco. Aqui, aparece um referencial forte de Fabiano, uma espécie de paradigma que o oprime e fascina: seu Tomás da bolandeira, o velho bom e lido:
Em horas de maluqueira, Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente bem que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo. Na verdade, a opressão representada por seu Tomás da bolandeira inferioriza Fabiano na medida em que significa o poder e o respeito adquiridos pela bondade e pela cultura, em oposição ao poder autoritário dos “outros brancos”, que vê como inimigos.
No Cap. 3, “Cadeia”, quando o soldado amarelo (adjetivo referente à farda, que é signo de autoridade e que, portanto intimida o vaqueiro) convida-o para o jogo, ele tenta imitar seu Tomás da bolandeira e o resultado é uma profusão de palavras desconexas: “-Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto etc. É conforme”.
Depois de pronunciá-las, segue o soldado “que era autoridade e mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e sustância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia”. O mesmo ocorre no Cap. 10, “Contas”, quando ele se sabe roubado e culpa as contas “erradas” da mulher para desculpar-se perante o patrão, que ameaça despedi-lo.
Estes exemplos de passividade culminam no Cap. 11, referente ao reencontro entre Fabiano e o soldado amarelo. Embora o soldado amarelo se acovarde perante Fabiano, este não consegue enfrentá-lo, o que faz com que se fira de vez em seu orgulho, em sua dignidade, atribuindo à velhice a inação.
Aos exemplos colocados, contrapõem-se momentos de revolta vividos por Fabiano. Embora na cadeia tente culpar a família, a responsabilidade que o prende a sinhá Vitória e aos filhos, dentre outros motivos confusos e inúteis de que se utiliza para justificar a submissão, Fabiano intimamente sente-se “um traste, uma coisa, a bolandeira de seu Tomás”.
Por duvidar de que realmente faz parte da condição humana, na medida em que nada tem, e que humanidade é associada a propriedade, o vaqueiro por um lado resigna-se, aceita-se como inferior, estende aos filhos a “sina” que recebeu do pai, o qual, por sua vez, a herdou do avô.
Por outro lado, entretanto, no capítulo “Inverno” (Cap. 7) dá vazão à individualidade esmagada, inventando histórias nas quais é herói e vence todas as brigas. Já em “Festa” (Cap. 8), embriagado e sem possibilidade de ser ouvido, profere insultos e desabafos, não às autoridades, mas aos matutos como ele, que se divertem na festa de Natal...
Em conclusão, Fabiano, “de olhos azuis, barba e cabelos ruivos”, embora negue a si próprio reconhecer-se como ser humano, já que teme as palavras e também o convívio com os homens, é humanamente soletrado pelo narrador, ao perguntar-se se é homem, se é bicho, se e por que precisa morrer, enquanto o seu desejo maior e mais poderoso é o de vida.
Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia.
A pé, não se agüentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos — exclamações, onomatopéias.
Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.
Sinhá Vitoria
No Cap. 4, denominado “Sinhá Vitória”, ela cozinha e, como o marido, perde-se em pensamentos confusos. A briga que tiveram por ele se recusar a realizar-lhe o sonho de ter uma cama de lastro de couro, como a de seu Tomás da bolandeira e as de outras pessoas, magoa Sinhá Vitória.
Esta mágoa, de que se vinga maltratando Baleia e os filhos, desencadeia a lembrança da vida antiga, de que havia se esquecido. Com a comparação de Fabiano entre ela vestida de sapato de verniz e um papagaio, vem-lhe à mente o papagaio que, por sugestão dela, fora sacrificado para alimentá-los durante a seca. Recordação de que foge, pensando em Deus. No final deste capítulo, uma conclusão de sinhá Vitória é significativa para a compreensão da personagem:
Inútil consultar Fabiano, que sempre se entusiasmava, arrumava projetos. Esfriava logo — e ela franzia atesta, espantada, certa de que o marido se satisfazia com a idéia de possuir uma cama. Sinhá Vitória desejava uma cama real, igual à de seu Tomás da bolandeira.
Sendo assim, enquanto Fabiano oscila entre a condição de homem e a condição de bicho, a revolta e a submissão, a esperança imprecisa e o determinismo teimoso, enquanto o medo de reagir faz com que não aja, Sinhá Vitória encarna a praticidade, o espírito de iniciativa, a fé em Deus e num destino melhor para a família.
Por desejar uma cama real e não se conformar com a idéia de cama que satisfaz Fabiano — metáforas do comportamento de ambos — é ela quem aponta a direção concreta a ser seguida por todos, do começo ao final do romance.
Com a mesma precisão, decide pela morte do papagaio e faz as contas certas dos negócios de Fabiano, embora inutilmente. Na festa de Natal na cidade — o marido roncando e sonhando com muitos soldados amarelos, ameaçadores — Sinhá Vitória alivia a vontade de urinar, molha os pés das outras matutas, pensa que a vida não é má e, apesar do medo da seca, fica ali “de cócoras, cachimbando, os olhos e os ouvidos muito abertos para não perder a festa”.
Considerada por Fabiano “o único vivente que o compreendia”, encanta-o com o raciocínio rápido que associa o aparecimento das aves de arribação com a morte do gado (“As arribações bebiam a água. Bem. O gado curtia sede e morria. Muito bem. As arribações matavam o gado”, Cap. 11 — “O Mundo Coberto de Penas”).
Quando, no último capítulo, a família foge da seca, Fabiano procura adiar a viagem, pois teme afastar-se da fazenda, teme convencer-se da realidade.
Já Sinhá Vitória reza e fraqueja, uma ternura imensa enche-lhe o coração, sente necessidade de falar (“se ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo”).
Chega-se então a Fabiano, e puxa com ele uma conversa de esperança que aos poucos o vai animando. Ele elogia-lhe as pernas grossas, as nádegas volumosas, os peitos cheios. Ela baixa os olhos, envaidecida, e reconhece que logo estaria magra, de seios bambos. “Mas recuperaria carnes”. Insiste com o marido até dominá-lo: “Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos?”.
Entre o “zumbido” de um e o “rosnado” de outro, pensam nos filhos: seriam vaqueiros, na opinião do pai; adotariam costumes diferentes, estudariam, na opinião da mãe.
Fabiano divide-se, ao mesmo tempo deslumbrado com os sonhos da mulher e, ao sentir-se fraco, tendo pena dela. Após descansarem, ele indica um bebedouro à frente e, diante da dúvida de sinhá Vitória, exalta- se, procura incutir-lhe coragem, “mente sem saber que está mentindo para excitá-la, enquanto ela lhe transmite esperança”.
No bebedouro que se torna realidade, voltam a cochichar projetos, as fumaças do cigarro e do cachimbo misturaram-se [...] Pouco a pouco, uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando. Acomodar-se-iam num sitio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano, criado solto no mato. Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os meninos freqüentariam escolas, seriam diferentes deles. Fabiano ria [...] As palavras de sinhá Vitória encantavam-no. [...] Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era. Repetia docilmente as palavras de sinhá Vitória, as palavras que sinhá Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam para o Sul, metidos naquele sonho.
O Menino mais novo, O Menino mais velho e Baleia
No Cap. 5, que lhe é dedicado, o menino mais novo deseja imitar o pai, expressando a admiração que o faz querer “virar” Fabiano.
No entanto, na medida em que não consegue compartilhar esta fantasia com Baleia, com a mãe, ou com o objeto de sua admiração, tem pensamentos confusos, que lhe revelam a solidão: “Conversando, talvez conseguisse explicar-se”.
Mas a ausência de interlocutores e o fracasso da aventura machucam-no e levam-no a sonhar, a desejar crescer — transformar-se em homem e assim deixar admirados Baleia e o irmão.
Um fragmento do sonho do menino, do qual só a natureza participa, exemplifica alguns dos momentos de lirismo presentes no romance:
Levantou os olhos tímidos. A lua tinha crescido, engrossava, acompanhada de uma estrelinha quase invisível. Àquela hora os periquitos descansavam na vazante. Se possuísse um daqueles periquitos, seria feliz.
Baixou a cabeça, tornou a olhar a poça escura que o gado esvaziara. Uns riachos miúdos marejavam na areia como artérias aberus de inimais.
No Cap. 6, acontece com o menino mais velho a mesma decepção sofrida pelo menino mais novo, por motivo idêntico: a solidão, a incomunicabilidade. Ao perguntar a Sinhá Vitória o significado da palavra “inferno”, primeiro ela falou de “espetos quentes e fogueiras”. Depois, como insistisse, “achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote”. Baleia, suspeitando “que as coisas não iam bem”, “topou o camarada, chorando, muito infeliz, à sombra das catingueiras [...] Afinal convenceu-o de que o procedimento dele era inútil”.
O menino, então, conta-lhe baixinho uma história, “valendo-se de exclamações e de gestos” (seu vocabulário era minguado como o do papagaio morto no tempo da seca).
Todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava simpatia [...] Ele tinha querido que a palavra virasse coisa e ficara desapontado quando a mãe se referia a um lugar ruim, com espetos e fogueiras. Por isso rezingara, esperando que ela fizesse o inferno transformar-se.
Nos pensamentos confusos do menino mais velho, relatados a Baleia, ocorre outro momento de lirismo, agora humanizando a natureza:
Além havia uma serra distante e azulada, um monte que a cachorra visitava, caçando preás, veredas quase imperceptíveis na caatinga, moitas e capões de matos, impenetráveis bancos de macambira — e aí fervilhava uma população de pedras vivas e plantas que procediam como gente.
Para o menino mais velho, “todos os lugares conhecidos são bons”, o que o faz associar o “mundo ruim” com a época da seca, lembrando-se das pancadas que Fabiano lhe dera. Mas, “quando tudo se consertara”, era como se as coisas ruins nunca tivessem existido e o mundo se povoasse de magia: “Ossos e serros transformavam-se às vezes nos entes que povoavam as moitas, o morro, a serra distante e os bancos de macambira”.
Embora não soubesse falar direito — imitando “os berros dos animais, os sons dos galhos que rangiam na caatinga, roçando-se” — ele decide decorar a palavra “inferno” e ensiná-la ao irmão e à cachorra, “sem acreditar que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim”.
Entretanto, nem o consolo de Baleia, nem a invenção de que “não fizera a pergunta, não recebera, portanto o cascudo”, diminuem-lhe a tristeza. Sentindo-se fraco e desamparado, abraçou a cachorrinha com uma violência que a descontentou. Não gostava de ser apertada, preferia saltar e espojar-se [...] O menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-se para não magoá-lo, sofria a carícia excessiva, O cheiro dele era bom, mas estava misturado com emanações que vinham da cozinha. Havia ali um osso. Um osso graúdo, cheio de tutano e com alguma carne.”
Comentário Geral sobre as Personagens
Ao longo da análise, os capítulos do enredo nos foram apontando a interioridade dos personagens, e assim configurando sua humanidade desvalida, solitária, incomunicável.
A solidão, a dificuldade de expressão — seja pela desatenção dos outros, seja pela ausência de palavras — e os pensamentos confusos constituem elementos que aproximam todos os personagens de Vidas Secas.
Entretanto, há algo de específico no universo infantil, cujas fantasias — virar o pai, possuir periquitos, entender o sentido de uma palavra, fazer de conta que não houve o castigo injusto para não sofrer — encontram eco na delicadeza de sentimentos de Baleia.
Embora também tenha o seu sonho e os seus gostos, que às vezes não coincidem com as necessidades das crianças, Baleia parece juntar-se a elas, que por sua vez se unem à natureza, servindo como uma espécie de elo de ligação entre a sensibilidade ingênua e primitiva e a insensibilidade, talvez a inconsciência, também ingênua e primitiva, dos adultos em relação a elas.
Nesse sentido, a cachorrinha e os meninos se contrapõem a sinhá Vitória e Fabiano. Entretanto, tal contraposição se relativiza se pensarmos na condição de opressão que todos sofrem; os adultos reagindo através da reprodução do que sentem, e assim oprimindo e marginalizando; as crianças e Baleia reagindo através da fantasia, do sonho, da comunhão com a natureza da qual decorre a leveza poética, o encantamento mágico que exemplificamos.
Tempo/Espaço
O tempo e o espaço de Vidas Secas podem ser estudados a partir de duas contradições: a contradição período de seca/período de chuva e a contradição sertão/cidade.
Nesse sentido, há certo determinismo no livro. As condições climáticas e a opressão social interferem na existência de uma família pobre, de modo que ela vive como retirante ou como agregada. Daí o romance iniciar-se com uma Mudança — do nomadismo para a estabilidade — para concluir-se com uma Fuga — da estabilidade para o nomadismo.
Ambos os movimentos, determinados pela suspensão e pelo reaparecimento da seca, formam “o anel de ferro”, a circularidade “sem saída” da travessia das personagens.
Entre eles, o período de mais ou menos um ano em que, se há trabalho e água, se há gado e plantação, não deixa de haver, concomitantemente, a relação de opressão. Tal relação, exercida pelo patrão de Fabiano e, devido a um “abuso de poder”, pelo soldado amarelo, acaba estendendo-se, para ele, aos “brancos” da cidade, em especial às autoridades: o vigário, o delegado, o cobrador de impostos etc.
Diante destas figuras, que representam a mesma violência, a violência da opressão, Fabiano titubeia, emudece, submete-se, deixando de se sentir gente. A única alternativa que possui para ao menos imaginariamente romper “o anel de ferro” é a sugerida por sinhá Vitória: tentar a vida no Sul.
Desta forma, Vidas Secas retoma o problema dos “dois brasis” levantado por Euclides da Cunha em Os Sertões: o Brasil sertanejo, anacrônico e miserável, abandonado à própria sorte cujas condições climáticas ajudam a piorar, e o Brasil civilizado e cosmopolita, o Sul, para onde “o sertão mandaria [...] homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos”.
Nestes aspectos, embora os transcenda, Vidas Secas possui ligações fortes com o romance regionalista e o romance proletário.
Linguagem
As frases curtas, a pontuação precisa e cortante, o uso do futuro do pretérito nas passagens em que o discurso indireto livre permite que sejam expressos os sonhos das personagens, a inexistência de diálogos, a abundância de interjeições, exclamações, sons onomatopaicos, substituindo a fala dos personagens e mostrando-lhes a animalidade, constituem alguns dos elementos enriquecedores de Vidas Secas.
A eles acrescentamos a dimensão visual e sonora explorada na descrição da natureza, ora inclemente em sua aridez, ora significando segurança, esperança, seja quando, animizada, une-se aos sonhos dos personagens, seja através da imagem dos juazeiros, verdes e acolhedores, destoando do abandono e da secura que o livro expõe com a violência e a precisão do mestre Graciliano Ramos.
Vamos exemplificar este raro equilíbrio entre sobriedade e expressividade, entre concisão e adesão aos seres marginalizados pela natureza e pela sociedade, com algumas passagens da obra. Leia-as e releia-as com atenção, para entender os motivos de Vidas Secas constituir um clássico de nossa literatura.
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes [...] As manchas dos juazeiros tornaram a aparecer, Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira e os ferimentos. As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a embira tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas. Os calcanhares, duros como cascos, gretavam e sangravam [...].
Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de Sinhá Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam [...]. Sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.
(Cap. 1, “Mudança”)
Sinhá Vitória manejou o abano, e passado um minuto as labaredas espirraram entre as pedras.
O círculo de luz aumentou, agora as figuras surgiam nas sombras, vermelhas. Fabiano, visível da barriga para baixo, ia se tomando indistinto daí para cima, era um negrume que vagos clarões cortavam. [...]
Não havia perigo da seca imediata, que aterrorizara a família durante meses. A caatinga amarelecera, avermelhara-se, o gado principiara a emagrecer e horríveis visões de pesadelo tinham agitado o sono das pessoas.
De repente um traço ligeiro rasgara o céu para os lados da cabeceira do rio, o trovão roncava perto, na escuridão da meia-noite rolaram nuvens cor de sangue. A ventania arrancara sucupiras e imburanas, houvera relâmpagos em demasia [...].
Mas aquela brutalidade findara de chofre, a chuva caíra, a cabeça da cheia aparecera arrastando troncos e animais mortos [...].
Sinhá Vitória moveu o abano com força para não ouvir o barulho do rio, que se aproximava. Seria que ele estava com intenção de progredir? O abano zumbia, e o rumor da enchente era um sopro, que esmorecia para lá dos juazeiros [...].
As vacas vinham abrigar-se junto à parede da casa, pegada ao curral, a chuva fustigava-as, os chocalhos batiam. Iriam engordar com o pasto novo, dar crias. O pasto cresceria no campo, as árvores se enfeitariam, o gado se multiplicaria. Engordariam todos, ele Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cacholTa Baleia. Talvez sinhá Vitória adquirisse uma cama de lastro de couro. Realmente o jirau de varas onde se espicharam era incômodo.
(Cap. 7, “Inverno”)
EXERCÍCIOS
1. (UNICAMP) O capítulo “O Mundo Coberto de Penas”, do romance Vidas Secas (Graciliano Ramos), inicia-se com a seguinte descrição feita pelo narrador:
O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal, provavelmente o sertão ia pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se nas árvores da beira do rio, descansavam, bebiam e, como em redor não havia comida, seguiam viagem para o sul. O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado.
Sinhá Vitória falou assim, mas Fabiano resmungou, franziu a testa, achando a frase extravagante. Aves matarem bois e cabras, que lembrança! [...] Um bicho de penas matar o gado! Provavelmente Sinhá Vitória não estava regulando”.
a) Sinhá Vitória vê a chegada das aves ao bebedouro do gado como um sinal. De acordo com o enredo de Vidas Secas, o que simboliza a chegada das aves?
b) Transcreva, do trecho citado, uma passagem que confirme a resposta dada ao item anterior.
c) Como o sinal identificado por Sinhá Vitória pode ser relacionado à trajetória da família de Fabiano, em Vidas Secas?

2. (UNICAMP) Um personagem constantemente mencionado em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é seu Tomás da bolandeira. Homem letrado, é tido como um exemplo de “sabedoria” por Fabiano, que muitas vezes o vê como um modelo.
Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo. Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros, mas não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem remediado ser cortês. Até o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele. Ah quem disse que não obedeciam?
a) Cite um episódio do romance em que fica evidente a dificuldade de expressão de Fabiano, na presença de pessoas que julga superiores.
b) Como o episódio escolhido por você exemplifica a relação, percebida por Fabiano, entre um uso mais “difícil” da linguagem e o poder exercido por determinadas pessoas?

3. (FUVEST) “E pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos: mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.”.
Este é o retrato de Fabiano, do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
a) Por que o autor enumera os caracteres físicos de Fabiano?
b) Que sentido tem a palavra cabra no texto?

4. Leia o fragmento abaixo, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele. Estava acostumado, tinha a casca muito grossa, mas às vezes se arreliava. Não havia paciência que suportasse tanta coisa. Um dia um homem faz besteira e se desgraça.
Pois não estavam vendo que ele era de carne e osso?”
Agora, responda às questões propostas:
a) A quem o fragmento se refere?
b) Que elementos do fragmento nos permitem caracterizar o foco narrativo da obra? Por quê?

5. Assinale a alternativa incorreta:
a) A temática do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, não se reduz às conseqüências da seca e da opressão, mas, através de ambas, concentra-se na oscilação entre sujeito e objeto que universaliza as criaturas que povoam a obra.
b) Em Vidas Secas, a contradição entre passividade e revolta constitui a principal característica de Fabiano, protagonista da obra.
c) Em Vidas Secas, Sinhá Vitória, a esposa de Fabiano, caracteriza-se pela praticidade, pelo inconformismo, o que a faz tomar as iniciativas concretas para o destino da família.
d) Personagem de Vidas Secas, Seu Tomás da bolandeira representa o poder e o respeito adquiridos pelo conhecimento e pela humanidade, o que ao mesmo tempo inferioriza e seduz Fabiano, o protagonista da obra.
e) Na medida em que é considerada um membro da família, a cachorra Baleia, de Vidas Secas, toma-se um importante e lírico parâmetro de conscientização dos personagens da obra, que graças a ela conseguem refletir sobre a própria desumanidade.

6. Leia atentamente as afirmações a seguir:
1. O Cap. 3, de Vidas Secas, denomina-se “Cadeia”. Nele Fabiano é forçado a jogar cartas com um soldado amarelo, quando vai à cidade fazer compras, e em seguida é provocado por ele, que pisa em seus pés. O palavrão com o qual reage faz com que o soldado mande prende-lo e espancá-lo na cadeia. A relação entre o episódio e o contexto geral da obra é muito grande, pois o episódio ilustra a opressão vivida por Fabiano e constitui um dos elementos que o torturam, ao longo de todo o livro.
II. Assim como o episódio do capítulo “Cadeia” ressoa em praticamente todos os capítulos posteriores, simbolizando a opressão de Fabiano, a sua desconfiança em relação aos “brancos” da cidade, os outros capítulos de Vidas Secas, embora sejam autônomos nos episódios que relatam, e se justaponham sem nexos lógicos, relacionam-se na medida em que vão mostrando as diferentes facetas da condição de inferioridade social, vivida por Fabiano e sua família.
III. Em Vidas Secas, o primeiro e o último capítulo — “Mudança” e “Fuga” — possuem em comum o fato de mostrarem a circularidade “sem saída” da existência dos personagens, já que enquanto em “Mudança” eles chegam a uma fazenda, onde viverão depois de um período de seca, em “Fuga”, diante de outro período de seca, vêem-se obrigados a partir, e a voltar à condição de retirantes.
Na sua opinião, a(s) afirmação(ões) corretas são:


a) Todas
b) Nenhuma
c) Apenas a III
d) Apenas a II
e) Apenas a I



7. Em que sentido Vidas Secas, de Graciliano Ramos, possui características de romance regionalista e de romance proletário, e em que sentido transcende estas classificações?

8. Leia o fragmento a seguir de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, para responder as questões propostas:
Tudo seco em redor. E o patrão era seco também, arreliado, exigente e ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru.
Indispensável os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru, consertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus [...] Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito... Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar direito? [...] Livres daqueles perigos, os meninos poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos. Agora tinham obrigação de comportar-se como gente da laia deles”.
a) Que elemento da linguagem da obra se sobressai no primeiro parágrafo do fragmento?
b) Considerando o segundo parágrafo, procure explicar a afirmação de Antonio Candido a respeito da obra:
“[...] a força com que transcende o realismo descritivo, para desvendar o universo mental de criaturas cujo silêncio ou inabilidade verbal leva o narrador a inventar para elas um expressivo universo interior”.
c) Qual a função dos verbos no futuro do pretérito, no fragmento apresentado?

9. FUVEST 2000, 1 FASE
Em Vidas Secas e em Morte e Vida Severina, os retirantes Fabiano e Severino:
a) São quase desprovidos de expressão verbal, o que lhes dificulta a comunicação até mesmo com os mais próximos.
b) Encontram na relação carinhosa com os filhos sua única fonte permanente de ternura em um meio hostil.
c) Surgem como flagelados, que fogem das regiões secas, mas se decepcionam quando chegam ao Recife.
d) São homens rústicos e incultos, que não possuem habilidades técnicas ou ofícios que lhes permitam trabalhar.
e) Aparecem como oprimidos tanto pelo meio agreste quanto pelas estruturas sociais.

10. FUVEST 2000, l FASE
1. Em Vidas Secas, a existência dos seres oprimidos e necessitados é apresentada como um mundo fechado, no qual os sonhos e esperanças são ilusões; já em Primeiras Estórias, na vida de carências e opressões, algumas vezes abrem-se brechas que dão lugar à solidariedade, ao humor e aos sonhos realizáveis.
II. Em Primeiras Estórias, o homem rústico, dotado de cultura oral-popular, já se encontra ausente; em Vidas Secas, ele ainda ocupa o centro da narrativa.
III. Em Vidas Secas, a visão de mundo das personagens infantis é parte importante da narrativa; já naqueles contos de Primeiras Estórias em que elas surgem, a percepção da criança não se mostra importante ou reveladora.
em
A oposição entre Vidas Secas e Primeiras Estórias está correta apenas


a) I.
b) II.
c) I e II.
d) I e III.
e) II e III.



FUVEST 2000, 1 FASE — Texto para as questões 11 e 12
Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da caatinga rala.”
(GRACILIANO RAMOS, Vidas Secas.)
11. Reestruturando-se o terceiro período do texto, mantém-se o sentido original apenas em:
a) A viagem progredira bem três léguas, uma vez que haviam repousado bastante na areia do rio seco, dado que ordinariamente andavam pouco.
b) Haviam repousado bastante na areia do rio seco; a viagem progredira bem três léguas porque ordinariamente andavam pouco.
c) Porque haviam repousado bastante na areia do rio seco, ordinariamente andavam pouco, e a viagem progredira bem três léguas.
d) Ainda que ordinariamente andassem pouco, a viagem progredira bem três léguas, pois haviam repousado bastante na areia do rio seco.
e) Em virtude de andarem ordinariamente pouco e de haverem repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas.

12. Tendo em vista a relação, neste texto, entre o vocabulário e os efeitos de sentido, é INCORRETO afirmar que
a) o adjetivo “avermelhada” retrata o rigor do clima.
b) “rico seco”, “galhos pelados”, “caatinga rala” caracterizam um espaço hostil aos viajantes.
c) as palavras empregadas pelo narrador reproduzem as das personagens.
d) os nomes dos viajantes substituem-se por um adjetivo substantivado
— “os infelizes”.
e) a expressão “o dia inteiro” equivale a “todo o dia”.

FUVEST 2000, 1 FASE — Texto para as questões 13 e 14
Sinhá Vitória falou assim, mas Fabiano resmungou, franziu a testa, achando a frase extravagante. Aves matarem bois e cabras, que lembrança! Olhou a mulher, desconfiado, julgou que ela estivesse tresvariando.”
(GRACILIANO RAMOS, Vidas Secas.)
13. Uma das características do estilo de Vidas Secas é o uso do discurso indireto livre, que ocorre no trecho


a) “Sinhá Vitória falou assim”.
b) “Fabiano resmungou”.
e) “franziu a testa”.
d) “que lembrança”.
e) “olhou a mulher”.




14. O prefixo assinalado em “tresvariando” traduz idéia de:


a) substituição
b) contigüidade
c) privação
d) inferioridade
e) intensidade

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